sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Monteiro Lobato: de autor a vítima de uma censura


Andam querendo censurar os livros infantis de Monteiro Lobato. Motivo: racismo. Exatamente, o Monteiro Lobato da Narizinho, Emília, Pedrinho, Dona Benta, Tia Nastácia, Tio Barnabé, Visconde de Sabugosa e Cuca! Personagens da infância de tantos, há mais de 50 anos. E querem enquadrá-lo no racismo, banindo um de seus livros, mais especificamente o “Caçadas de Pedrinho”, da rede pública de ensino.

No STF tramita um Mandado de Segurança impetrado pelo Instituto de Advocacia Racial, que alega haver na obra claros elementos racistas, como por exemplo, um em que Pedrinho compara pessoas a macacos: “Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou, que nem uma macaca de carvão” e “Não é a toa que macacos se parecem tanto com os homens. Só dizem bobagens.”. É preciso um pouco de esforço interpretativo para considerar estes trechos “claros elementos de racismo”.

Ou melhor, é preciso um grande esforço interpretativo para considerar racista a obra infantil de Monteiro Lobato; este esforço é o da descontextualização e o da má interpretação: é o “politicamente correto” lendo sem entender.

Monteiro Lobato nasceu antes da abolição da escravatura, em 1882. Ainda muito novo, herdou as fazendas do seu avô, o Visconde de Tremembé, e passou a ser fazendeiro. Monteiro Lobato tinha todas as características do típico brasileiro de elite de então, e o homem-médio daquela época convivia com mais naturalidade com o preconceito. Não podemos fechá-lo no racismo de hoje em dia, sendo a sua obra historicamente tão distante: é um atentado à interpretação, uma leitura atemporal e tola.

Dizer que Monteiro Lobato pratica racismo em seus livros infantis é permitir dizer que Machado de Assis também o pratica em várias de suas grandes obras, chamando de pretos os empregados da casa de Bentinho, por exemplo, em “Dom Casmurro”. Trata-se também de uma obra muito antiga e que, além de contextualização temporal, necessita a percepção sutil de ironias e ambiguidades.

Vetar obras desse tipo por serem “racistas” é emburrecer a interpretação de texto. Que capacidade interpretativa poderemos esperar de crianças que só terão contato com textos assépticos? Textos sem as idiossincrasias de personagens, que não retratam a vida cotidiana e que não possuam nada “ruim” não permitem o exercício de julgamento sobre o que se lê.

Naturalmente, a leitura destas obras deve ser acompanhada pela orientação hermenêutica dos professores e talvez até de advertências quanto ao seu conteúdo, mas jamais simplesmente banidas, censuradas.

O que se pretende dizer com a censura do livro de Monteiro Lobato é o mesmo que dizer que o governo espartano, há milhares de anos, era socialmente atrasado por eliminar bebês com deformidades. Ora, é um dado histórico triste, diga-se de passagem, mas é um dado histórico que deve ser abstraído dentro de seu contexto histórico. Assim como Monteiro Lobato.

Espero que não cometam esse atentado, primeiro à literatura e, não menos importante: à nossa inteligência.



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 24 de novembro de 2012.

sábado, 17 de novembro de 2012

O brasileiro sempre precisa de um herói


Os Estados Unidos sempre tiveram muitos heróis: Super-Homem, Mulher Maravilha, Homem-Aranha e por aí vai; até a Alemanha nazista, na época da Segunda Guerra Mundial, teve direito a um grande personagem do gênero, o Caveira Vermelha, arqui-inimigo do Capitão América. Nós, por outro lado, chegamos no máximo a ter o infame Zé Carioca, personagem de quadrinhos de Walt Disney criado na década de 1940, caracterizado por ser malandro, vagabundo, caloteiro e gente boa. Que fase!

O Brasil, na esteira desta hipossuficiência histórica de heróis, sempre teve de se virar para arrumar um exemplo à americana: um herói nacional. O resultado disso é o endeusamento de figuras públicas ou ficcionais que acabam vestindo a carapuça de herói por um motivo ou outro, e substituem esse desejo no imaginário dos brasileiros.

Não sei ao certo quando esta prática começou, mas um momento marcante dela foi o da eleição presidencial de 2002. Àquela época, o país ainda ressentia-se dos anos de ditadura e cambaleava lentamente na direção da estabilidade econômica quando, de forma inédita, elegeu um metalúrgico do ABC paulista. O brasileiro precisou de um herói, e eis que surge presidente o Lula, ferrenho opositor do regime militar, que foi alçado ao posto de semi-deus da nação por ser a alegoria perfeita do povo brasileiro em sua pobreza, ignorância e luta por uma vida melhor – merecendo até filme!

Alguns anos depois, em 2007, Wagner Moura estrela o blockbuster Tropa de Elite, interpretando o Capitão Nascimento – personagem que se tornou uma espécie de Chuck Norris dos trópicos. Com a crescente violência no Rio de Janeiro e no resto do país e uma interpretação digna de Oscar, Capitão Nascimento representou o anseio moralmente duvidoso de muitos brasileiros por aí: agredir fisicamente ou matar até um bandido. Nascia mais um ídolo, ainda que sob as vestes da violência e da tortura.

Hoje em dia, em 2012, não estamos tão distantes das realidades de 2002 e 2007. Com o julgamento do “mensalão” em todas as mídias há alguns meses, o brasileiro já escolheu um novo salvador: o paladino da Justiça, Min. Joaquim Barbosa, relator do tal processo. Nas redes sociais inclusive já surgiram imagens de Joaquim Barbosa, de toga, sendo comparado ao Batman, pela vestimenta também preta e o combate ao crime de colarinho branco e estrelinha vermelha na lapela.

Joaquim Barbosa, em sua batalha contra a corrupção, muitas vezes confundiu austeridade com grosseria. Sendo mal-educado com advogados e colegas, conquistou a simpatia dos brasileiros prostrados com a desonestidade às custas de afetações inexplicáveis e deboches aos outros ministros, protagonizando episódios infelizes no palco do Supremo Tribunal Federal.

Então o que têm em comum Lula, Cap. Nascimento e Joaquim Barbosa? Com muitos ídolos no futebol e poucos na sociedade (e nos quadrinhos), eles desempenharam todos o mesmo papel: heróis de um povo que simplesmente precisa se apegar a algo heroico, seja lá o que for, seja bom ou ruim.



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 17 de novembro de 2012.

sábado, 10 de novembro de 2012

Tablets, computadores... E o ensino, como é que fica?


Circulava pelas redes de comunicação uma proposta de campanha para a prefeitura de Manaus, nas últimas eleições, em que se daria para cada estudante da rede pública municipal, de determinados níveis, um computador. “Dá pra fazer!”, seguia-se dizendo, “cabe no orçamento!”. Curiosamente, há não muito tempo e no mesmo sentido da dita campanha à prefeitura, o Governo do Estado anunciou que daria tablets aos alunos finalistas da rede pública estadual.

Como vimos, “dá pra fazer” mesmo e coube no orçamento do Estado, assim como talvez coubesse no orçamento da prefeitura, segundo os cálculos demonstrados no programa de governo que mencionei anteriormente. Tablet, computador... Qual é a relevância de tudo isso? Quais são as consequências do programa? Esse mesmo dinheiro não poderia operar outras mudanças mais significativas na educação regional?

Primeiramente: aonde iriam parar estes computadores ou tablets? A manutenção e assistência técnica seriam fornecidas gratuitamente? Como fica o consumo de energia elétrica de famílias que, sem condições de ter o tal aparato, agora o têm e o utilizam em suas tomadas? Não possuo o dom da vidência, mas penso que gastar este dinheiro em eletroeletrônicos para alunos é correr o risco de ver todo o investimento caindo no chão e quebrando (literalmente!), sendo perdido, arranhado, riscado, vendido, roubado, utilizado no Facebook e por aí vai. O que dificilmente aconteceria com um livro, muito embora o livro também dificilmente fosse ser lido.

Ainda, muito melhor do que um tablet por aluno seria poder dar um tablet por professor da rede pública de ensino e um aparelho de Datashow por sala de aula. Posto que o objetivo seja investir em educação, o primeiro passo é investir em quem educa e em como se educa. Se com este dinheiro não é possível aumentar significativamente os salários de todos os professores, que eles pelo menos possam ganhar o bendito tablet, já que provavelmente o utilizarão com muito mais rigor do que os estudantes.

Esse pretenso investimento em inclusão digital e educação é mesmo uma grande ideia, sendo que temos problemas mais urgentes no momento? Há trabalhos científicos que defendem programas desse tipo. De fato, eles não são ruins, é que simplesmente não faz sentido dar computadores sem antes dar educação.

Com o mesmo dinheiro, talvez fosse possível fazer salas de computadores nas escolas, com o número de PCs mais do que suficiente para atender a demanda dos alunos e da comunidade ao redor; ou até, quem sabe, iniciar um projeto mais arrojado de educação à distância para o interior do Amazonas.

Na situação em que estamos, como um dos lanternas nas classificações do ensino público nacional, qualquer investimento em educação tem algum valor, qualquer coisa é bem vinda. Esse programa mostra, se não uma seriedade em ver pessoas saindo das escolas sabendo ler, escrever e realizar equações simples, uma preocupação em que elas saibam se conectar. Mas devemos nos perguntar: qual é a prioridade?



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 10 de novembro de 2012.

sábado, 3 de novembro de 2012

E os mendigos que não são "gatos"?


Você conhece a história do mendigo gato? Aconteceu há algumas semanas no Facebook, este grande laboratório da sociedade moderna. Em meados de outubro, pelas ruas de Curitiba, uma moça foi abordada por um morador de rua que pediu para que ela tirasse uma foto dele e a pusesse na “rádio”, para que ele pudesse ficar famoso. Na rádio ela disse que não poderia, naturalmente, mas que colocaria no seu Facebook. Pois colocou. E tornou-se viral: mais de 50 mil shares e até matérias em inúmeros jornais do país, inclusive no EM TEMPO.

Com a grande repercussão do caso, a história de vida do “mendigo gato de Curitiba” foi aparecendo: era um jovem de família, bom aluno e ex-modelo que, em virtude do vício em crack, fugiu de casa e passou a viver nas ruas. A família já não conseguia ajudá-lo mais e nem dispunha dos recursos para tanto. Foi quando a bondade humana revelou-se e uma clínica de reabilitação ofereceu tratamento para o rapaz, que foi internado e já está passando por todas as avaliações necessárias, segundo os noticiários.

Diante dessa história, várias pessoas bradaram a plenos pulmões que era lindo ver a sociedade se movimentando para ajudar o “mendigo gato”, uma demonstração de amor ao próximo e movimentação social para ajudar alguém com um problema. Realmente, é muito bom saber que foi feito um esforço para tirar uma pessoa das ruas e, sobretudo, da drogadição. Contudo, sejamos francos: se o mendigo fosse feio a moça provavelmente teria chamado a polícia ao invés de tirar a foto.

Não se trata de sermos cruéis ou frios. A verdade é que, às vezes, precisamos ser sinceros com nós mesmos, por mais que doa encarar as consequências desse tipo de raciocínio: havia um mendigo “gato” que, ao ser fotografado, alcançou a fama pela internet. Se fosse um mendigo feio (como a grande parte dos mendigos infelizmente é, embora o “politicamente correto” não nos permita dizer), o desfecho seria outro. Aliás, é por isso que vemos pouquíssimos moradores de rua protagonizando notícias como esta; pelo contrário, quase sempre aparecem como vítimas em notícias sobre violência.

Por que, entre tantos outros, o mendigo gato é especial? Sem hipocrisia aqui: ele é especial porque o ser humano cultua a beleza, e não a fealdade. Não estou dizendo que foi errado tratá-lo como foi tratado e levá-lo para uma clínica; por outro lado, também não estou dizendo que devemos abordar todos os mendigos ao nosso redor e levá-los para casa. Nem lá, nem cá. Digo apenas que, conquanto seja legal fazer bem para o outro, é importante fazê-lo em crítica constante, para que o ato seja consciente, e não mecânico.

O mendigo era “gato”. Com certeza você, leitor (ou leitora), alguma vez na vida, já deu um bom dia mais sorridente para uma vizinha mais bem apessoada, ou já deu uma gorjeta maior para uma atendente mais “simpática”. Não é nada anormal, a Filosofia Estética discute isso há muito tempo e é senso comum: temos uma queda pelo belo. Mas que tal, da próxima vez, ajudarmos um mendigo feio também? 



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 3 de novembro de 2012.