sábado, 28 de dezembro de 2013

Sobre retrospectivas

Passa o Natal, vem chegando o réveillon, e as “retrospectivas 2013” se intensificam, como sempre ocorre em todos os dezembros, todos os anos. Em mídia escrita e televisiva, apresentadores falam da visita do Papa, das condenações do mensalão, da venda de Neymar ao Barcelona, das manifestações que avassalaram o país, dos agraciados pelo Oscar e pelo Nobel e por aí vai. Resumindo: dezembro é a celebração da memória humana por meio de grandes retrospectivas.

A memória humana, a propósito, é algo incrível, e aqui vale uma pequena digressão. Minha avó materna, com idade já avançada, possui certa dificuldade para se comunicar, lembrar a fisionomia dos netos e genros mais distantes etc., como é comum nesta fase da vida. Contudo, inquirida sobre qualquer operação matemática de multiplicação ou divisão, demora pouquíssimos segundos para dar a resposta certeira. Igualmente, certo dia uma de minhas primas colocou na sua frente um pequeno teclado de brinquedo, no qual ela habilmente tocou as primeiras notas da 9ª Sinfonia de Beethoven com precisão. E há décadas não sentava ao piano!

Talvez seja por isso que tantas retrospectivas são feitas todos os anos, porque nossa memória tenha algo incrível e também de traiçoeiro: esquecemos fatos, nomes, rostos; e lembramos, noutro giro, sabores, movimentos, respostas. Quem seleciona, na organização da mente, as gavetas de lembranças que abrem com facilidade e as que emperram, fechando-se eternamente? É capricho de deus ou da álea? Pela dúvida, a ordem é rememorar. Daí se faz retrospectivas.

Há um outro motivo importante: erramos sempre as mesmas coisas. Um dos objetivos da História é documentar nossos erros e acertos, a fim de que possamos eliminar os primeiros e reiterar os últimos. Assim funciona uma retrospectiva também, já que certamente veremos no que governo vacilou, ao aumentar juros aqui e acolá; e como o “brasileiro médio” acertou ou errou, ao investir em um ou outro investimento etc.

Por fim, a última (ou pelo menos a última que consigo lembrar) razão de ser das retrospectivas é nos dar a impressão de que a vida é feita de ciclos. Termina 2013, inicia-se 2014, um novo “ano”. Evidentemente, fatiar o tempo em dias, semanas, meses e anos foi uma ideia incrível, pura invenção humana. O tempo, na realidade, é um só do começo ao fim, e o homem teve a iniciativa de dividi-lo em etapas porque a sensação da contundente imposição eterna do tempo seria insuportável. Com a vida devidamente separada em anos, temos a oportunidade de fechar ciclos ruins e começar ciclos bons; caso contrário não poderíamos.


Aproveitemos, então, as fatias do tempo em ciclos. Que os demônios de 2013 fiquem aqui em 2013, junto com suas frustrações, desilusões, desistências e desesperanças. E que em 2014 se possa trazer à memória nossos erros e acertos, com ajuda de deus ou do acaso, para que se inicie e se feche um ciclo bom. Feliz ano novo!



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 28 de dezembro de 2013.

sábado, 21 de dezembro de 2013

O Natal e os três homens cegos

O Natal é, ao mesmo tempo, uma data religiosa e um fato social. É uma data religiosa porque simboliza o nascimento de Cristo para as religiões cristãs; e é um fato social porque o Natal se impõe a todos independentemente da crença religiosa de cada um. É verdadeiramente impossível, pelo menos no Brasil, não “passar pelo Natal”, mesmo não sendo cristão.

Se ele tem significado bem definido para a cristandade, então o que resta àqueles que só o percebem como um “fato”, e não como uma data religiosa? Em outras palavras: qual o significado do Natal para ateus e pessoas de outras religiões? Fatalmente será um significado ligeiramente diverso do que é dado pelo cristianismo, mas não menos nobre.

 John Hicks, filósofo contemporâneo, trata da diversidade de religiões através da narrativa sobre a percepção sensorial de três homens cegos ao descreverem um elefante. A literatura filosófica, ao longo dos anos, desenvolveu outras histórias baseadas na mesma premissa, e eu peço licença para humildemente utilizar a minha, e não a original, que está disponível na internet. Imaginemos, pois, dois homens cegos, e não três.

Dois homens cegos são levados para o Encontro das Águas, tendo lhes sido dito somente que iriam para um rio, sem que soubessem qual. Lá chegando, cada um pulou de um lado do barco, nadou um pouco e depois voltou à embarcação. O cego que havia pulado no rio Negro descreveu a experiência de nadar em um rio com águas leves, de temperatura um pouco mais elevada; o cego que pulara no rio Solimões discordou, e narrou que tinha pulado em um rio um pouco mais frio, com águas pesadas e provavelmente barrentas. Cada um dos dois atestou, irredutivelmente, o acerto próprio e o erro do outro.

Algum deles está incorreto? Evidentemente, não. Assim é que John Hicks defende que todas as religiões estejam certas, ainda que os dogmas de uma sejam absolutamente conflitantes com os dogmas de outra. Dessa forma, não há incongruência no convívio pacífico entre as inúmeras religiões existentes, uma vez que todas são percepções (culturalmente) distintas do que é a divindade. E o que isso tem haver com a mensagem do Natal?

A história dos dois (ou três) homens cegos nos traz essencialmente a ideia de tolerância e diálogo. Assim, ainda que não se acredite no Natal, por motivos religiosos, ou que se esteja convicto de que a data é apenas um artifício de mercado, é preciso ter em mente que essas convicções não são “erros” ou “acertos”, mas apenas perspectivas diferentes sobre um mesmo fenômeno. Não foi o que quis Francisco I pregar, quando falou de tolerância e da aproximação da Igreja Católica com as outras igrejas?


Saiamos, contudo, do campo da religião, porque essa premissa vale para muitas outras coisas, e têm faltado tolerância e diálogo em tudo: no futebol, na política, no trânsito, na justiça. Os exemplos são muitos, mas o espaço é limitado. Que o Natal nos dê, então, além do feijão-com-arroz reflexivo de todos os anos, um pouco mais de tolerância e diálogo. Nós precisamos!



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 21 de dezembro de 2013.

Adeus, Madiba

Nelson Mandela morreu, mas suas lutas ainda continuam muito vivas. Falecido no último dia 5 de dezembro, Nelson “Madiba” Mandela foi um dos mais promissores políticos da história mundial recente, tendo presidido a África do Sul de 1994 a 1998, após mais de 25 anos em prisão política no seu próprio país, por haver se rebelado contra a injustiça, a desigualdade e a tirania. A descrição é breve, mas a verdade é que Nelson Mandela dispensa qualquer apresentação.

Uma das maiores batalhas de Madiba foi contra o Apartheid, um regime de segregação racial que durou quase 50 anos e que dividia a população sul-africana em grupos de “negros”, “brancos”, “de cor” e “indianos”, por exemplo. Em 1994, com a eleição de Mandela e o fim oficial do Apartheid (precedido, evidentemente, de alguns anos de negociações), houve o triunfo da igualdade e da democracia; e a queda da discriminação. Em tese.

A morte de Mandela deve servir para nos lembrar de que suas causas não foram vencidas e, por mais que ele tenha sido vitorioso em algumas de suas empreitadas políticas, ainda há por demais racismo e discriminação na África do Sul e no mundo – em especial no Brasil. Nelson Mandela se foi e, por isso, devemos reforçar que aquilo que ele combatia permanece e deve continuar sendo combatido. O Apartheid teve um fim “oficial”, mas todos os dias é possível ver segregação nas ruas, nas escolas e no trabalho – e a igualdade, garantida pela lei, serve para quê?

Segundo Nietzsche, a igualdade é um conceito artificial, falso e corruptivo, inventado pelos homens mais fracos para contrapor o poder dos homens mais fortes; na natureza, diz ele, não haveria igualdade. É possível concordar com o filósofo? Certamente a igualdade é um conceito desenvolvido pelo homem, a partir de sua racionalidade, mas isso não significa que seja um conceito “falso e corruptivo”. É, na realidade, um “trabalho” em constante progresso, que deve ser sempre incentivado; suas bases devem sempre ser fortalecidas.

Por essa razão não devemos rememorar a morte de Mandela apenas emocionadamente, como sugerem com ingenuidade jornais e televisão, e achar que a luta pela desigualdade social e racial fora vencida há anos. Ainda vivemos em uma sociedade desigual, e a morte de Nelson Mandela deve reforçar a luta (por vezes esquecida e morna) pela dignidade de mulheres, negros, homossexuais, deficientes físicos, presidiários etc., que têm de (con)viver constantemente com o preconceito, o despreparo da administração pública e as suas próprias dificuldades.

Nessa última semana, em meio às comoções pelo falecimento de Madiba, um dos mestres da Jaqueira, João Thomas Luchsinger, disse que Nelson Mandela não havia morrido, e que, enquanto existissem o ódio e a injustiça, existiria seu exemplo de vida. De fato, não há outra conclusão senão esta. Morre um ícone da luta pela democracia (aquela, em que idealmente há a igualdade), e subsistem os demônios da discriminação racial e do preconceito. Morre um ícone, mas continua a sua luta.



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 14 de dezembro de 2013.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Quem somos nós?

Certa vez, conversando com um amigo, ele me contou que resolvera visitar um psicólogo, porque queria apertar um pouco seus parafusos. Contou-me que havia relutado muito, mas que um belo dia tinha ligado para o consultório e marcado um horário. Lá chegando, acomodou-se no divã e, após as considerações iniciais de praxe, ouviu a seguinte pergunta vinda do terapeuta: “quem é você?”.

Disse que não soube responder e que, diante do fato de simplesmente não poder responder àquela pergunta, desabou em lágrimas. Chorava copiosamente enquanto se dava conta de que não sabia quem era ele próprio, até que enfim se acalmou a deu curso à consulta. E a partir daí eu já tinha deixado de prestar atenção no relato sobre a primeira sessão de terapia e me concentrava, incomodado, na pergunta que tinha deixado meu colega tão fora de si: “quem é você?”.

Albert Camus, escritor francês, possui uma célebre frase: “Se queres ser reconhecido, é só dizeres quem és. Creio que não sabemos quem somos. O que alguém faz, no fundo, é muito mais importante do que o que sabe sobre si mesmo”. José Saramago, noutro passo, dizia que viver sem saber onde estamos era algo na vida que não poderia suportar, e arrematava com ironia: “Sim, estamos na Terra, no sistema solar, na galáxia, mas realmente onde estamos?”. Pois não creio que saibamos.

A existência humana é marcada pela ignorância e pela dúvida; a curiosidade e a busca pelo conhecimento são consequências disso, e a Filosofia e a Ciência, que mais nos dão novas perguntas do que novas respostas, estão aí para nos provar isso. E nós, quem somos? A esse questionamento é quase impossível responder. Sabemos quem amamos, o que comemos, com o que trabalhamos e o que gostamos de fazer nas horas vagas, mas jamais poderemos afirmar com certeza que sabemos quem somos.

Por esse motivo, muito provavelmente, é o que homem vive em conflito com o mundo: porque não se conhece e não consegue resolver seus conflitos internos. Lembro-me de outra anedota. Visitei um “clube do livro” outro dia, apesar de não ter lido o livro que havia sido indicado para a reunião; justamente por não ter lido o livro, fiz questão de atentar para os debates. Já não me recordo o enredo, mas grande parte das discussões versou sobre “descoberta” e “consciência” do próprio caminho, e sobre como o indivíduo busca conhecer a si próprio, exatamente por ser insipiente.


Depois de ter ficado a reunião toda calado (afinal, não tinha lido o livro!), fui questionado sobre o tema em pauta. Confesso que pensei pouco e acabei falando qualquer besteira que, na hora, me tinha soado como puro artifício de retórica... Horas depois, pensando sobre o assunto, cheguei à conclusão de que não tinha ido tão mal, e que minhas palavras até que faziam algum sentido. E se fôssemos a eterna busca pelo autoconhecimento? Enxergamos a vida sob uma ótica embaçada, e todos os dias tentamos “limpar a janela” dos nossos olhos, desconstruir nossas impressões e expectativas, e nos conhecer melhor. É isso que somos?



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 7 de dezembro de 2013.