No distante ano de 1990 (lá se vão
mais de 20 anos), a banda punk Bad Religion lançava a música “21st Century
Digital Boy”, em que previa, no refrão, um fenômeno dos dias de hoje. Assim
diziam: “I’m a 21st century digital boy, I don’t know how to read but I’ve got
a lot of toys”. Ou seja: “sou
um garoto digital do século XXI, eu não sei ler, mas tenho muitos brinquedos”. Alguma
semelhança com a atualidade?
Lembrei-me da música – um clássico
do punk californiano dos anos 90, por sinal – depois de ver um comercial de uma
pizzaria local, em que a mãe perguntava à filha o que ela queria na sua
festinha de aniversário. E a garotinha respondia: “muita pizza, brincadeira,
internet e videogame!”. Então passei a imaginar como seria a curiosa festinha
da menina, em que várias crianças se ignorariam mutuamente, enquanto comeriam
pedaços de pizza e se distrairiam com o Facebook e vários videogames.
O refrão irônico da música do Bad
Religion infelizmente estava certo, e hoje o mundo está cheio de “garotos
digitais do século XXI”, que não sabem ler, mas têm muitos brinquedos. Pior: o
mal se estendeu também aos adultos e seus “gadgets”, que proporcionam uma incrível
cena comum de se ver, na qual várias pessoas estão em uma mesa sem conversar
enquanto empunham seus smartphones e tablets. Nada contra a tecnologia,
evidentemente – é até mesmo desnecessário mencionar todas as facilidades que a
conectividade dos dias de hoje nos dá. No entanto, fico me perguntando se esses
efeitos colaterais (ignorar quem está ao lado e se fixar no seu telefone) são
naturais ou se o homem não está sabendo lidar direito com todos esses avanços,
e acaba passando por pesadas consequências.
Milan Kundera, romancista tcheco
radicado em Paris, tem um livro (“L‘art du roman”, 1986) em que diz que o papel
primordial do romance é desvendar a existência humana em seus aspectos ainda
inexplorados. Impossível não concordar com o autor, mas vou além. O grande
desafio da cultura no século XXI (da Literatura, da Filosofia, da Ciência etc.)
será também tentar redescobrir a essência da existência humana e, com isso,
tentar combater o processo de “alheamento” pelo qual estamos passando.
Sim, o homem está passando por um
processo de “alheamento”, de ficar indiferente aos outros e, portanto, passar a
ser indiferente a si e à própria condição humana. Certa vez vi uma foto, na
internet, em que um restaurante havia pendurado uma placa que dizia assim:
“não, não temos wi-fi, conversem entre si!”. Ora, é óbvio que já se percebe, então,
esse fenômeno. Mas como desvendá-lo e combatê-lo?
Muito aconteceu desde o lançamento
de “21st Century Digital Boy”, e qualquer processo social que àquela época os
cantores punks tenham notado, hoje em dia está bem pior. Culpa de quem? Não da
tecnologia, mas de como lidamos com ela. Desaprendemos a ter contato com quem
está do nosso lado na fila de espera do médico, e agora o caminho de volta
certamente será mais difícil.
Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 25 de janeiro de 2014.