sábado, 29 de dezembro de 2012

Por um 2013 com menos pressa e mais compreensão


Neste caos organizado, globalizado e hiperconectado em que nós vivemos hoje em dia, a maioria das pessoas pensa que conhece o mundo só porque consegue abrir o Google Maps em um celular à palma da mão e bisbilhotar um apanhado de cidades e países em poucos minutos. Não é bem assim: talvez a graça do universo seja poder sentir-se pequeno diante dele, e essa se tornou uma sensação raríssima. Por uma ironia curiosa da História e da vida, não se percebe mais sequer que existe um universo. Existe, para o nosso mundo cheio de correria e afazeres, a necessidade de estudar e trabalhar sem olhar para os lados, esquecendo-se de viver e erguer a cabeça.

Por um segundo, deixe de lado o burburinho das conversas ao redor, as notícias sobre a crise na Europa, o fim do mundo, o estresse, a televisão: o mundo é sensível e precisa ser sentido com calma, então pare um pouco. Os países não são somente um nome, uma situação econômica e um IDH; são pessoas, costumes, ar que se respira, prato que se come, cerveja que se bebe... Então por que não viajar? E fazer tudo sem pressa, sem correria.

Reflita: ano após ano a expectativa de vida do homem-médio cresce; surgem novos tratamentos para o câncer, novas obras de arte e música, novos amigos, novos voos da sua cidade para um lugar diferente – às vezes até uma boa promoção de Manaus até Nova Iorque! Para que graduar-se aos 21 anos? Aos 22, 23... Que diferença mesmo é que faz? Um direito tão fundamental quanto o direito à vida, à privacidade e à honra deveria ser o direito de um homem por os pés na Muralha da China, no Everest, no Deserto do Saara – ou em qualquer lugar que lhe apetecer. Ora, não é fundamental conhecer o mundo em que se vive?

Somente duas horas de avião separam o Porto, em Portugal, de Marraquexe, no Marrocos; e menos de dez horas de voo separam Ankara, na Turquia, de Pequim, na China. Muitas vezes nós conseguimos passar mais tempo do que isso trabalhando ou dormindo, então não são voos tão longos assim se pararmos para pensar.

De que tamanho é o mundo? Se calhar não é tão grande quanto se acredita e pode até valer a pena conhecê-lo com os próprios olhos. Por exemplo, você acha que conhece o mundo islâmico só porque o vê pela televisão? E o Rio de Janeiro oferece muito mais do que lindas mulheres em biquínis ousados durante o carnaval. Você não tem curiosidade em saber mais sobre a catedral de ossos da República Tcheca? Ou a cidade fantasma de Fordlândia, no Pará? Veja o mundo por si, sinta-o pelos próprios olhos, sem agonia, em qualquer lugar.

Não precisa ter pressa, o tempo corre hoje exatamente como corria na época de nossos pais, minuto por minuto; não precisa ter medo. Aliás, é uma ótima resolução para o ano de 2013: conhecer um pouco melhor o mundo – pode ser na Índia ou naquele restaurante do bairro que você ainda não teve disposição para visitar. O mundo é uma mulher misteriosa, então ouse: dê-lhe um beijo no rosto e quem sabe ela não lhe mostra alguns outros segredos?



Artigo publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 29 de dezembro de 2012.

sábado, 22 de dezembro de 2012

Mais do que roupa, um pouco de poesia


Talvez seja seguro dizer que, quando as pessoas doam roupas em caridade, grande parte das doações seja motivada mais pela falta de espaço no armário do que pela caridade em si. E isso de modo algum é errado: é pura e simplesmente unir o útil ao agradável, é querer livrar-se de um excesso de roupas e repassá-las a pessoas que estejam em necessidade. Aliás, mesmo que a solidariedade não seja o principal propulsor destas doações, é bom que as pessoas se desprendam de bens materiais e que isso ajude outrem no fim das contas.

Podemos supor que seja fácil, em geral, abrir mão daquelas roupas que já não vestem tão bem e que estão largadas no fundo de uma gaveta. Outras doações seguem o mesmo “estilo” de fácil desprendimento: artigos de higiene e limpeza, lençóis, um microondas velho que perdeu lugar para um novo, um quilinho ou dois de alimentos não perecíveis e outras coisas aqui e acolá.

O desafio acontece quando as doações passam a ser de objetos a que nos apegamos. A propósito, não é somente difícil doar coisas que nos são queridas, mas, sobretudo, jogar fora coisas inúteis e que nos trazem lembranças agradáveis: tampinhas de cerveja de uma viagem saudosa, uma prova com nota dez da época de escola, uma caneta preferida cuja tinta se esgotou, enfim.

Há pessoas, como eu, que têm ciúmes imensos de seus livros. Adoro indicar leituras e até empresto livros às vezes, mas sob a condição de tê-los de volta tão logo o cessionário termine de ler. Certa vez até briguei com minha namorada por isso: emprestei-lhe um livro que, depois de oito meses, ela não lera; por isso, tomei-o de volta e causei uma celeuma gravíssima no relacionamento. Até hoje não podemos falar sobre Umberto Eco sem que haja constrangimento.

Outro caso de forte apego é o de meu pai: ele possui um piano, herança de meu avô, que passa longos dias sem que dele se tire uma única nota. Já se cogitou doar o piano a algum jovem estudante sem condições de arcar com a compra de instrumento tão caro, ou de cedê-lo a algum conservatório local. Deve ser dificílimo, para meu pai, pensar em se desfazer de um piano que carrega tantas histórias e lembranças.

Por ocasião do incêndio no bairro São Jorge, resolvi fazer uma doação e me deparei com um impasse diante do armário: doaria duas camisetas com frases de Fernando Pessoa e Machado de Assis? Resolvi colocá-las logo na sacola e me livrar da dúvida antes que eu desistisse de passar adiante aquelas roupas de que gostava tanto, mesmo quase não as usando mais. Depois, pensei que aquelas duas simples camisetas fossem as melhores peças de todas as doações da cidade, porque não só aqueceriam o corpo como também a mente, com cultura e poesia. Fiquei feliz.

Doar um piano, um bom livro ou uma roupa com belas frases pode não salvar definitivamente a vida de quem está em crise, recebendo doações. Contudo, é certamente um bálsamo para a alma de quem doa: saber que aquele objeto, que não nos realiza mais plenamente, dará um pouco mais de brilho à vida de quem o receber.



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 22 de dezembro de 2012.

domingo, 16 de dezembro de 2012

O Brasil tem sido feliz no humor nos últimos anos


Não é preciso ser crítico especializado para falar sobre diversas coisas: uma estreia no cinema, o álbum novo de um músico ou até, com um pouco de esforço, a instalação de um artista plástico. Na verdade, muitas vezes a opinião do público se coaduna com o parecer da crítica especializada, como vemos todos os anos nas premiações do Oscar e do Grammy ou no Nobel de literatura.

No entanto, na grande maioria das vezes, as coisas são boas ou ruins, ponto. Por exemplo, por mais elaborado que seja o prato de um grande chef francês, o seu sabor não deve ser inacessível ao mais ignorante dos homens; caso contrário, o prato é simplesmente ruim. Da mesma forma, um grande chef francês não deve deixar de reconhecer o sabor maravilhoso de um doce caseiro. Na gastronomia, não há muitas voltas a dar: as coisas são saborosas ou não, ainda que tenham sabores complexos.

O humor também é mais ou menos assim. Digo “mais ou menos” porque algumas pessoas têm o riso frouxo e riem de tudo, e outras são mais sisudas e não riem de nada; também porque algumas pessoas gostam de humor negro, ao passo que outras pessoas não o suportam; finalmente, é preciso ressalvar que algumas piadas, sobretudo as profundamente irônicas, exigem um grau de instrução que nem todas as pessoas possuem. No mais, é possível reduzir as críticas de humor a algo simples: ou é engraçado ou não é.

O Brasil tem sido feliz no humor nos últimos anos. O cinema melhorou muito. A televisão, conquanto não tenha passado por nenhuma inovação, manteve-se bem, e houve também o aparecimento e expansão de uma modalidade muito interessante de fazer piada, o “stand up comedy”, normalmente traduzido como “comédia em pé”. Trata-se de uma pessoa fazendo comédia sem maquiagem ou fantasia, em pé e diante de uma plateia, apenas comentando com sarcasmo e chiste as situações curiosas do cotidiano.

O problema é que as apresentações de stand up comedy se limitam a sessões em teatros, e a comédia feita na televisão e no cinema passa por restrições bastante compreensíveis em função dos horários e do público. Então como fazer humor com qualidade e liberdade? A internet deu a resposta.

Um grupo de comediantes, atores, publicitários e artistas, muitos dos quais já com passagem pela televisão, fundou um canal de vídeos no YouTube e passou a publicar semanalmente esquetes de humor sem as amarras da televisão, sem as limitações de público dos teatros: chama-se “Porta dos Fundos”.

Com pouco mais de um mês no ar, os vídeos do “Porta dos Fundos” já possuem quase de 40 milhões de exibições, mais de 250 mil pessoas inscritas, e o programa já foi notícia em inúmeros sites e revistas das áreas de entretenimento e negócios. Na última semana, merecidamente, o canal recebeu o prêmio APCA de melhor programa de humor da TV. Sem estar na TV. Mais uma vez, agora no humor, a internet gerou uma revolução de criatividade e inovação. Quais serão os próximos passos?



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 15 de dezembro de 2012.

sábado, 8 de dezembro de 2012

Uma cidade engraçada, que não tem teto nem nada


A Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro divulgou, na última semana, o IFDM – Índice Firjan de Desenvolvimento Municipal, que lista as melhores capitais para se viver no Brasil, levando em conta estatísticas divulgadas pelo governo em emprego, renda, educação e saúde. Manaus ficou em último lugar.

Alguém não esperava por isso? Não podemos esperar boa colocação em uma lista de cidades com qualidade de vida se não temos sequer o básico para uma cidade minimamente organizada. Manaus até lembra “A Casa”, de Vinícius de Moraes: era uma casa muito engraçada / não tinha teto / não tinha nada.

Não precisamos buscar os dados oficiais em emprego, renda, educação e saúde para notar que a cidade está aquém do desejado: mal temos calçadas, árvores, ruas e saneamento básico, como querer coisas mais elaboradas? Ademais, carecemos seriamente de boa prestação de serviço em grande parte dos estabelecimentos, sofremos com uma péssima organização urbana e temos um trânsito que nos faz perder tempo e, consequentemente, muito dinheiro.

No trânsito e mobilidade urbana, aliás, temos a sempre promessa de BRT e monotrilho: um expresso que “dessa vez, vai” e um trem-fantasma à la Mad Maria, como dizem as más línguas. Enquanto não ficam prontos, segundo o governador, o Estado pode decretar feriados nos dias de grandes eventos e as pessoas se locomoverão sem maiores problemas. A questão, infelizmente, é que decretar feriados para sempre não aumentará a qualidade de vida do manauense.

Nos aspectos analisados pela FIRJAN, os problemas transbordam. A carência de mão-de-obra qualificada no setor da construção civil, por exemplo, é tamanha, que faltam pedreiros e mestres-de-obras. Na educação, os avanços divulgados são fruto da maquiagem feita pelo ensino público que concede aprovações ano após ano sem qualquer critério qualitativo. O interesse em dar tablets aos alunos da rede pública é grande; o interesse em dar educação de qualidade, nem tanto.

Diante de tudo isso, alguém ainda se espanta com a posição que obtivemos neste ranking? O que é de espantar é que Manaus está entre as 10 cidades mais ricas do país, com o PIB muito próximo de cidades como Curitiba, Belo Horizonte e Porto Alegre, que estão entre as 10 melhores cidades para se viver, segundo o ranking FIRJAN. É claro que estamos inseridos em contextos distintos destas outras capitais. Mas o quão grande é essa diferença que justifique uma disparidade galáctica na qualidade de vida?

Muito dinheiro foi mal administrado para que chegássemos a este nível. A postura da população, portanto, deve ser de cobrança. É muito triste ler que Manaus esteja tão rebaixada, sobretudo para quem é apaixonado pelo rio, pelas pessoas, pela culinária – para quem nasceu e cresceu aqui.

É importante, contudo, manter a indignação e saber cobrar do governo e das pessoas uma postura diferente e que traga resultados positivos – afinal, se nós já fomos a Paris dos Trópicos, temos plena capacidade de voltar ao topo.



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 8 de dezembro de 2012.

sábado, 1 de dezembro de 2012

O que fazer para não sustentarmos bandidos


Certa vez, num passeio de férias, o guia turístico passou por um prédio público e disse: este aqui é o melhor lugar da cidade, onde podemos obter três refeições por dia, hospedagem e lavanderia de graça; é nosso presídio. Lembrei-me do episódio depois de ler as declarações do governador do Estado sobre as rebeliões em presídios do interior e da capital, dizendo que não poderíamos sustentar mordomias de bandidos e que, em nosso sistema prisional, as vítimas sustentavam os criminosos.

As mordomias a que se refere o governador, ouso deduzir, são as reinvindicações dos encarcerados: atendimento médico, assistência social e água potável. O Brasil está distante da realidade deste lugar onde fui passar férias, em que o presídio é lembrado com gracejo por significar o sustento gratuito de detentos; o próprio Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, em uma sincera gafe, disse que preferia morrer a ter que cumprir pena em um presídio brasileiro. Não penso que detentos precisem de mordomias; contudo, o Estado deve dar tratamento humano a qualquer cidadão que precise – criminoso ou não.

E as vítimas sustentam os prisioneiros? Sustentam; e têm mesmo que sustentar, porque isso faz parte da vivência em sociedade: os sãos sustentam o tratamento dos doentes, os que podem pagar um médico particular pagam impostos para a saúde pública; quem não tem filhos sustenta a creche e a escola de quem tem, e, por fim, a vítima sustenta o encarceramento do prisioneiro. É bem simples: vivemos em tal dinamismo que, facilmente, o saudável de hoje adoeça amanhã; que o jovem envelheça antes de morrer; que a vítima cometa um crime, que as mulheres engravidem e os homens virem pais etc.

Dizer que é injusto a vítima sustentar o criminoso através do tributo é uma falha de raciocínio. Ora, se a vítima resolve, por algum motivo, jamais estudar, ela deve ficar isenta de pagar impostos destinados à educação? Claro que não; há uma falha de raciocínio aí. Ademais, tratar um preso com dignidade é tão sinal de desenvolvimento quanto educar as crianças e cuidar dos idosos. E mais: que bom que a vítima “sustenta” o prisioneiro, posto que o objetivo principal da prisão seja a ressocialização, e não a mera punição, ainda que a realidade não alcance este ideal.

É difícil, para o cidadão de bem, aceitar que um bandido deva ser tratado com humanidade; é penoso imaginar que um homicida deva receber um tratamento digno que sequer pensou em dedicar às suas vítimas. No entanto, é preciso fazer um esforço e pensar na coletividade em perspectiva ampla.

Sob a escusa de não mais “sustentar” criminosos, o Estado deveria libertar todos e aí ninguém mais sustentaria ninguém, certo? Não é bem por aí. O caminho certo é a educação, em primeiro lugar, e as condições de ressocialização, subsidiariamente.

Aliás, para um governante humanista, o investimento em boas condições de encarceramento passa a valer quando há pelo menos um detento reabilitado e reajustado à sociedade, ainda que o restante tenha falhado.



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 1o de dezembro de 2012.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Monteiro Lobato: de autor a vítima de uma censura


Andam querendo censurar os livros infantis de Monteiro Lobato. Motivo: racismo. Exatamente, o Monteiro Lobato da Narizinho, Emília, Pedrinho, Dona Benta, Tia Nastácia, Tio Barnabé, Visconde de Sabugosa e Cuca! Personagens da infância de tantos, há mais de 50 anos. E querem enquadrá-lo no racismo, banindo um de seus livros, mais especificamente o “Caçadas de Pedrinho”, da rede pública de ensino.

No STF tramita um Mandado de Segurança impetrado pelo Instituto de Advocacia Racial, que alega haver na obra claros elementos racistas, como por exemplo, um em que Pedrinho compara pessoas a macacos: “Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou, que nem uma macaca de carvão” e “Não é a toa que macacos se parecem tanto com os homens. Só dizem bobagens.”. É preciso um pouco de esforço interpretativo para considerar estes trechos “claros elementos de racismo”.

Ou melhor, é preciso um grande esforço interpretativo para considerar racista a obra infantil de Monteiro Lobato; este esforço é o da descontextualização e o da má interpretação: é o “politicamente correto” lendo sem entender.

Monteiro Lobato nasceu antes da abolição da escravatura, em 1882. Ainda muito novo, herdou as fazendas do seu avô, o Visconde de Tremembé, e passou a ser fazendeiro. Monteiro Lobato tinha todas as características do típico brasileiro de elite de então, e o homem-médio daquela época convivia com mais naturalidade com o preconceito. Não podemos fechá-lo no racismo de hoje em dia, sendo a sua obra historicamente tão distante: é um atentado à interpretação, uma leitura atemporal e tola.

Dizer que Monteiro Lobato pratica racismo em seus livros infantis é permitir dizer que Machado de Assis também o pratica em várias de suas grandes obras, chamando de pretos os empregados da casa de Bentinho, por exemplo, em “Dom Casmurro”. Trata-se também de uma obra muito antiga e que, além de contextualização temporal, necessita a percepção sutil de ironias e ambiguidades.

Vetar obras desse tipo por serem “racistas” é emburrecer a interpretação de texto. Que capacidade interpretativa poderemos esperar de crianças que só terão contato com textos assépticos? Textos sem as idiossincrasias de personagens, que não retratam a vida cotidiana e que não possuam nada “ruim” não permitem o exercício de julgamento sobre o que se lê.

Naturalmente, a leitura destas obras deve ser acompanhada pela orientação hermenêutica dos professores e talvez até de advertências quanto ao seu conteúdo, mas jamais simplesmente banidas, censuradas.

O que se pretende dizer com a censura do livro de Monteiro Lobato é o mesmo que dizer que o governo espartano, há milhares de anos, era socialmente atrasado por eliminar bebês com deformidades. Ora, é um dado histórico triste, diga-se de passagem, mas é um dado histórico que deve ser abstraído dentro de seu contexto histórico. Assim como Monteiro Lobato.

Espero que não cometam esse atentado, primeiro à literatura e, não menos importante: à nossa inteligência.



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 24 de novembro de 2012.

sábado, 17 de novembro de 2012

O brasileiro sempre precisa de um herói


Os Estados Unidos sempre tiveram muitos heróis: Super-Homem, Mulher Maravilha, Homem-Aranha e por aí vai; até a Alemanha nazista, na época da Segunda Guerra Mundial, teve direito a um grande personagem do gênero, o Caveira Vermelha, arqui-inimigo do Capitão América. Nós, por outro lado, chegamos no máximo a ter o infame Zé Carioca, personagem de quadrinhos de Walt Disney criado na década de 1940, caracterizado por ser malandro, vagabundo, caloteiro e gente boa. Que fase!

O Brasil, na esteira desta hipossuficiência histórica de heróis, sempre teve de se virar para arrumar um exemplo à americana: um herói nacional. O resultado disso é o endeusamento de figuras públicas ou ficcionais que acabam vestindo a carapuça de herói por um motivo ou outro, e substituem esse desejo no imaginário dos brasileiros.

Não sei ao certo quando esta prática começou, mas um momento marcante dela foi o da eleição presidencial de 2002. Àquela época, o país ainda ressentia-se dos anos de ditadura e cambaleava lentamente na direção da estabilidade econômica quando, de forma inédita, elegeu um metalúrgico do ABC paulista. O brasileiro precisou de um herói, e eis que surge presidente o Lula, ferrenho opositor do regime militar, que foi alçado ao posto de semi-deus da nação por ser a alegoria perfeita do povo brasileiro em sua pobreza, ignorância e luta por uma vida melhor – merecendo até filme!

Alguns anos depois, em 2007, Wagner Moura estrela o blockbuster Tropa de Elite, interpretando o Capitão Nascimento – personagem que se tornou uma espécie de Chuck Norris dos trópicos. Com a crescente violência no Rio de Janeiro e no resto do país e uma interpretação digna de Oscar, Capitão Nascimento representou o anseio moralmente duvidoso de muitos brasileiros por aí: agredir fisicamente ou matar até um bandido. Nascia mais um ídolo, ainda que sob as vestes da violência e da tortura.

Hoje em dia, em 2012, não estamos tão distantes das realidades de 2002 e 2007. Com o julgamento do “mensalão” em todas as mídias há alguns meses, o brasileiro já escolheu um novo salvador: o paladino da Justiça, Min. Joaquim Barbosa, relator do tal processo. Nas redes sociais inclusive já surgiram imagens de Joaquim Barbosa, de toga, sendo comparado ao Batman, pela vestimenta também preta e o combate ao crime de colarinho branco e estrelinha vermelha na lapela.

Joaquim Barbosa, em sua batalha contra a corrupção, muitas vezes confundiu austeridade com grosseria. Sendo mal-educado com advogados e colegas, conquistou a simpatia dos brasileiros prostrados com a desonestidade às custas de afetações inexplicáveis e deboches aos outros ministros, protagonizando episódios infelizes no palco do Supremo Tribunal Federal.

Então o que têm em comum Lula, Cap. Nascimento e Joaquim Barbosa? Com muitos ídolos no futebol e poucos na sociedade (e nos quadrinhos), eles desempenharam todos o mesmo papel: heróis de um povo que simplesmente precisa se apegar a algo heroico, seja lá o que for, seja bom ou ruim.



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 17 de novembro de 2012.

sábado, 10 de novembro de 2012

Tablets, computadores... E o ensino, como é que fica?


Circulava pelas redes de comunicação uma proposta de campanha para a prefeitura de Manaus, nas últimas eleições, em que se daria para cada estudante da rede pública municipal, de determinados níveis, um computador. “Dá pra fazer!”, seguia-se dizendo, “cabe no orçamento!”. Curiosamente, há não muito tempo e no mesmo sentido da dita campanha à prefeitura, o Governo do Estado anunciou que daria tablets aos alunos finalistas da rede pública estadual.

Como vimos, “dá pra fazer” mesmo e coube no orçamento do Estado, assim como talvez coubesse no orçamento da prefeitura, segundo os cálculos demonstrados no programa de governo que mencionei anteriormente. Tablet, computador... Qual é a relevância de tudo isso? Quais são as consequências do programa? Esse mesmo dinheiro não poderia operar outras mudanças mais significativas na educação regional?

Primeiramente: aonde iriam parar estes computadores ou tablets? A manutenção e assistência técnica seriam fornecidas gratuitamente? Como fica o consumo de energia elétrica de famílias que, sem condições de ter o tal aparato, agora o têm e o utilizam em suas tomadas? Não possuo o dom da vidência, mas penso que gastar este dinheiro em eletroeletrônicos para alunos é correr o risco de ver todo o investimento caindo no chão e quebrando (literalmente!), sendo perdido, arranhado, riscado, vendido, roubado, utilizado no Facebook e por aí vai. O que dificilmente aconteceria com um livro, muito embora o livro também dificilmente fosse ser lido.

Ainda, muito melhor do que um tablet por aluno seria poder dar um tablet por professor da rede pública de ensino e um aparelho de Datashow por sala de aula. Posto que o objetivo seja investir em educação, o primeiro passo é investir em quem educa e em como se educa. Se com este dinheiro não é possível aumentar significativamente os salários de todos os professores, que eles pelo menos possam ganhar o bendito tablet, já que provavelmente o utilizarão com muito mais rigor do que os estudantes.

Esse pretenso investimento em inclusão digital e educação é mesmo uma grande ideia, sendo que temos problemas mais urgentes no momento? Há trabalhos científicos que defendem programas desse tipo. De fato, eles não são ruins, é que simplesmente não faz sentido dar computadores sem antes dar educação.

Com o mesmo dinheiro, talvez fosse possível fazer salas de computadores nas escolas, com o número de PCs mais do que suficiente para atender a demanda dos alunos e da comunidade ao redor; ou até, quem sabe, iniciar um projeto mais arrojado de educação à distância para o interior do Amazonas.

Na situação em que estamos, como um dos lanternas nas classificações do ensino público nacional, qualquer investimento em educação tem algum valor, qualquer coisa é bem vinda. Esse programa mostra, se não uma seriedade em ver pessoas saindo das escolas sabendo ler, escrever e realizar equações simples, uma preocupação em que elas saibam se conectar. Mas devemos nos perguntar: qual é a prioridade?



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 10 de novembro de 2012.

sábado, 3 de novembro de 2012

E os mendigos que não são "gatos"?


Você conhece a história do mendigo gato? Aconteceu há algumas semanas no Facebook, este grande laboratório da sociedade moderna. Em meados de outubro, pelas ruas de Curitiba, uma moça foi abordada por um morador de rua que pediu para que ela tirasse uma foto dele e a pusesse na “rádio”, para que ele pudesse ficar famoso. Na rádio ela disse que não poderia, naturalmente, mas que colocaria no seu Facebook. Pois colocou. E tornou-se viral: mais de 50 mil shares e até matérias em inúmeros jornais do país, inclusive no EM TEMPO.

Com a grande repercussão do caso, a história de vida do “mendigo gato de Curitiba” foi aparecendo: era um jovem de família, bom aluno e ex-modelo que, em virtude do vício em crack, fugiu de casa e passou a viver nas ruas. A família já não conseguia ajudá-lo mais e nem dispunha dos recursos para tanto. Foi quando a bondade humana revelou-se e uma clínica de reabilitação ofereceu tratamento para o rapaz, que foi internado e já está passando por todas as avaliações necessárias, segundo os noticiários.

Diante dessa história, várias pessoas bradaram a plenos pulmões que era lindo ver a sociedade se movimentando para ajudar o “mendigo gato”, uma demonstração de amor ao próximo e movimentação social para ajudar alguém com um problema. Realmente, é muito bom saber que foi feito um esforço para tirar uma pessoa das ruas e, sobretudo, da drogadição. Contudo, sejamos francos: se o mendigo fosse feio a moça provavelmente teria chamado a polícia ao invés de tirar a foto.

Não se trata de sermos cruéis ou frios. A verdade é que, às vezes, precisamos ser sinceros com nós mesmos, por mais que doa encarar as consequências desse tipo de raciocínio: havia um mendigo “gato” que, ao ser fotografado, alcançou a fama pela internet. Se fosse um mendigo feio (como a grande parte dos mendigos infelizmente é, embora o “politicamente correto” não nos permita dizer), o desfecho seria outro. Aliás, é por isso que vemos pouquíssimos moradores de rua protagonizando notícias como esta; pelo contrário, quase sempre aparecem como vítimas em notícias sobre violência.

Por que, entre tantos outros, o mendigo gato é especial? Sem hipocrisia aqui: ele é especial porque o ser humano cultua a beleza, e não a fealdade. Não estou dizendo que foi errado tratá-lo como foi tratado e levá-lo para uma clínica; por outro lado, também não estou dizendo que devemos abordar todos os mendigos ao nosso redor e levá-los para casa. Nem lá, nem cá. Digo apenas que, conquanto seja legal fazer bem para o outro, é importante fazê-lo em crítica constante, para que o ato seja consciente, e não mecânico.

O mendigo era “gato”. Com certeza você, leitor (ou leitora), alguma vez na vida, já deu um bom dia mais sorridente para uma vizinha mais bem apessoada, ou já deu uma gorjeta maior para uma atendente mais “simpática”. Não é nada anormal, a Filosofia Estética discute isso há muito tempo e é senso comum: temos uma queda pelo belo. Mas que tal, da próxima vez, ajudarmos um mendigo feio também? 



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 3 de novembro de 2012.

sábado, 27 de outubro de 2012

Devemos aprender com a civilidade americana


Eleições municipais em Manaus; eleições presidenciais nos Estados Unidos da América. Com a “festa da democracia” ocorrendo lá e cá simultaneamente, é impossível evitar comparações entre o que acontece aqui, entre Arthur Neto e Vanessa Grazziotin, e lá, entre Mitt Romney e Barack Obama. Mesmo em realidades distintas e distantes, há sim semelhanças entre os dois pleitos: são cargos no poder executivo, entre apenas duas pessoas e ambos têm dado o que falar na mídia.

Os EUA podem não ser o melhor exemplo de civilidade, é mesmo. Os casos são inúmeros: que nação “civilizada” aceita passivamente a pena de morte quando, no continente em que se insere, todos os países já respeitam (formalmente) os direitos humanos? Que nação civilizada é essa que possui uma política armamentista tão nociva? E a política internacional beligerante? E a prisão de Guantánamo? Realmente, muitos fatos depõem contra a civilidade norte-americana.

No entanto, mesmo que os americanos pequem no quesito civilidade por um lado, dão-nos uma aula noutro lado: eleições. Os recentes debates entre Romney e Obama são a prova indiscutível disso, quando um candidato chega a um debate, cumprimenta seu adversário e, mesmo empunhando um microfone em igual volume e tendo a faculdade de interromper o discurso adversário, consegue manter um nível alto de diálogo com o outro e com o público. E essa lição nós ainda não aprendemos.

Verdade seja dita: a atual eleição está permeada de baixarias, e é inegável que estejamos bastante aquém de um debate ideal, em que se encontrem ideias conflitantes, porém respeitosas. O que vemos diariamente são estratagemas de marqueteiros em jogadas que só nutrem a concorrência desleal, ao invés do confronto direto de ideologias, o confronto que deve estar a serviço do cidadão-eleitor.

Quando digo que devemos beber da civilidade norte-americana, quero dizer que devemos nos inspirar no debate objetivo: sem muletas, sem acusações cansativas e infundadas, mas com ideias boas e respeito por quem as traz.

A máxima de Voltaire deve ser introjetada em nossos candidatos: posso não concordar com o que dizes, mas lutarei pelo direito de dizeres. Funciona, no Brasil, da maneira diametralmente oposta: posso até concordar com o que dizes, mas lutarei para que estejas errado ao dizer! Vivenciamos um pleito em que, sobretudo, disputam pessoas, quando deveriam estar em confronto direto os projetos, as diretrizes e a gestão do futuro de uma cidade.

Infelizmente, nossas eleições municipais estão tão deturpadas que é muito mais fácil encontrar nas propagandas eleitorais um motivo para não votar em determinado candidato do que uma proposta de governo. Os valores certamente se inverteram.

Seja como for, Romney e Obama têm seus problemas lá na terra de Mickey Mouse, e Arthur e Vanessa têm seus problemas aqui na terra do tucumã; e isso, de modo algum, interessa ao eleitor: o que a cidade quer é uma conversa civilizada sobre a cidade em si. Será que teremos um dia? Bom voto a todos!



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 27 de outubro de 2012.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Sistema de cotas não seria mais um paliativo eterno?



Depois de anos de discussão, debates acalorados e até um breve passeio pelo Supremo Tribunal Federal, as cotas firmaram-se com os dois pés na educação brasileira. Com a Lei 12.711/12, sancionada há algumas semanas pela presidente Dilma Rousseff, as universidades federais devem dispor de 50% de suas vagas para o sistema de cotas sociais, dentre as quais há a cota racial também.

Muito já se disse sobre as cotas, em uma abordagem maniqueísta de prós e contras. Os pró-cotas sustentam a reparação de um erro histórico da escravidão e desigualdade social; os contra-cotas bradam aos quatro ventos que a cota é uma medida populista e assistencialista, um típico jeitinho brasileiro de maquiar um problema sério com uma solução precária. A cota é apenas uma política pública de inclusão social: não é simplesmente “boa” ou “ruim”, mas útil e utilizável.

A crítica mais sensata que se faz ao sistema de cotas é a de que ele não resolve questão da educação deficiente; e não resolve mesmo, porque não foi feito para resolver: a cota é somente uma medida paliativa para o problema. Se o objetivo é por negros, índios e pessoas de baixa-renda na universidade, a medida correta é investir em peso no ensino básico de qualidade.

Todavia, qualquer investimento em educação demora a frutificar. Valorização dos professores com aumento de salários e melhoria das condições de trabalho, segurança e infraestrutura nas escolas, programas de inclusão digital, fornecimento regular de livros e material didático, entre outras coisas: ainda que tudo isso seja feito da noite para o dia, os resultados só virão dentro de alguns anos, e as cotas servem para remediar o problema durante esse tempo.

Por isso, o sistema de cotas que se instituiu com a sanção da Lei 12.711/12 é um grande erro. Não se pode instituir tamanha fração de cotas levianamente, sem ao mesmo tempo prever planos e investimentos para o futuro da educação de base.

A mesma lei que institui as cotas deveria prever o aumento salarial dos professores de ensino fundamental e médio, a compra de livros e construção de bibliotecas, projetos de incentivo à leitura, a criação de programas esportivos e culturais e, acima de tudo, salas de aula com lousa e cadeira – objetos fundamentais tão negligenciados.

O sistema de cotas é só um remédio. A doença – a nossa educação débil – deve ser tratada em seu cerne, e não somente em seus sintomas. Uma medida imediata e emergencial é indissociável de uma solução definitiva a longo prazo, e por enquanto só temos a medida tapa-buraco.

A lei a que me referi, em seu antepenúltimo artigo, estabelece um prazo de 10 anos para que o programa seja revisado. Da maneira que está, sem qualquer previsão ainda que longínqua de investimentos eficientes em educação, depois de 10 anos veremos apenas mais um programa que precisará ser prorrogado por tempo indeterminado.

Não basta fazer a política pública certa; é preciso fazer na hora certa e do jeito certo. A hora é essa, mas vai ser mesmo desse jeito irresponsável?



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 29 de setembro de 2012.

Votos e devotos na contabilidade da eleição


Dada a largada na corrida pela prefeitura no pleito de 2012, não tardaram a surgir notícias em todos os veículos de comunicação sobre candidatos buscando apoio de grupos religiosos. De repente, em todos os cantos, prefeituráveis exibiam uma devoção inabalável, coincidindo curiosamente com a busca por votos.

Não duvido da fé de ninguém, mas acho estranho: como é comum adesivar carros, distribuir panfletos e fazer comícios, virou comum ir à igreja mais próxima e firmar aliança com um segmento religioso, buscando ser recomendado ou indicado por um líder litúrgico como o candidato certo para aquele cargo.

Mas foi Deus quem escolheu? Seria a versão democrática da teocracia? Certas igrejas em Manaus possuem mais de 100 mil adeptos, e ser o “eleito de Deus” em uma eleição municipal com tamanho apoio é uma vantagem política assustadora. Infelizmente, esses episódios pouco parecem ter relação com a fé e a devoção, e mais com a ambição de sentar na cadeira de chefe do Executivo municipal.

A separação entre religião e administração pública não vem daquele já cansado Princípio da Laicidade do Estado, que ainda vigora, mas do simples fato de que cada um possui seu negócio e não quer interferência de ninguém nele.

O Estado já não diz quem ele quer que ocupe cargos nas igrejas; e as igrejas já não ditam com quem o Estado deve firmar alianças políticas ou econômicas. As intervenções das igrejas em questões como o aborto e a união homoafetiva são apenas questões públicas e pleitos sociais a que têm direito todos os setores da sociedade, e não representam disputa eleitoral pelo poder.

O que fica parecendo é que essa separação enfraqueceu. O que prometem às igrejas os candidatos que delas buscam apoio político? Cargos, influência? Essa prática não é nova; muito pelo contrário, ela é praxe em todos os anos de eleição, entre candidatos e empresas, em troca de doações e apoio. A novidade que choca é que, dessa vez, é Deus quem cumpre o papel de empresa.

A posição dos candidatos é até compreensível, porque se supõe que façam e devam fazer tudo de lícito e possível por votos numa eleição. O que mais assusta, no entanto, é a posição dos inúmeros chefes de igrejas, “núcleos”, “células” e outras coletividades religiosas, que declaram apoio, entregam e prometem votos em nome de Deus e dos seus devotos. E a individualidade? Pior: e Deus, que nem teve a chance de se pronunciar? Para um líder religioso, que possui influência sobre famílias, pessoas e comunidades e sabe disso, talvez fosse mais discreto e interessante manter a neutralidade política.

No fim das contas, eleição é tempo de ouvir sugestões sim, do vizinho ou da família. Mas mais do que isso: é tempo de ouvi-las criticamente, lembrando que a escolha pelo melhor candidato não é de Deus ou de quem o representa, mas do cidadão e da sociedade.



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 19 de setembro de 2012.

O estupro da informação


A internet mudou a dinâmica de muitas coisas em pouco mais de 20 anos: o modo como namoramos, procuramos empregos, nos expressamos; mudou também a dinâmica de como se movimenta informação. O dicionário, que antes era o “pai dos burros”, perdeu a posição para o Google; a televisão teve que encarar o YouTube; o boca-a-boca agora é pelo Twitter e por aí vai.

Em meio a isso tudo, surge o Facebook (com seu botão compartilhar), para alterar ainda mais o jeito pelo qual milhares de pessoas manifestam uma indignação em comum, uma paixão, um hábito, uma frase. Além disso, a rede social mais popular do momento tornou-se a “espada” de revolucionários virtuais contra a corrupção, a falta de investimentos em saúde e educação, a pobreza e as injustiças da sociedade: lutar contra tudo isso está a um clique de distância.

Mas será que basta compartilhar uma imagem ou um texto no Facebook para cumprir o papel de cidadão ativo? Será que disseminar pensamentos revoltosos contra a corrupção já é combatê-la? Apesar da duvidosa eficácia do trabalho dos militantes virtuais, duas coisas boas surgem dessa história: as pessoas agora possuem mais informação e também tecem mais opiniões sobre as coisas que acontecem ao seu redor.

É importante ter uma opinião, ainda que tímida, delirante ou até mesmo comprovadamente errada. Quanto à informação, é uma questão de quantidade ou qualidade? De fato, cresceu o acesso à informação graças a essas novas mídias e redes sociais, mas muitas vezes é a informação errada, a desinformação.

Estamos diante de um grande perigo, qual seja o de as pessoas estarem se revoltando e se insurgindo sem nem saber por que ou pelo que, ou com base em enganos, falácias ou mentiras.

A partir daí, como a metástase de um câncer, começam a se espalhar correntes com informações absurdas ou dados falsos. Quem se lembra da “polêmica” com as palmeiras do condomínio Ephigênio Salles? Compartilhamento inocente de alguém que simplesmente não sabia que ali ocorria uma ação ecológica autorizada pela Prefeitura. Os exemplos são inúmeros: comparações teratológicas, estatísticas sem referências, informações falsas sobre a Lei da Ficha Limpa, o auxílio-reclusão, bolsa-família, salários de funcionários públicos, votos nulos e eleições, citações atribuídas a autores que jamais falaram nada daquilo e muito mais, espalhando-se pela rede como verdades incontestáveis.

O que ocorre é o verdadeiro estupro da informação e de tudo o que ela significa. Na era do “Pai Google”, a notícia que vem é suficiente, e quase ninguém se dá ao trabalho de verificar fontes e fatos, ocupando-se apenas de passar mentiras adiante como se isso esgotasse as possibilidades de agir, como se fosse expressão máxima da guerra contra tudo que existe de ruim e errado na vida.

Nós precisamos entender que o mundo não precisa de Che Guevaras virtuais, mas de mais pessoas razoáveis, críticas, curiosas e bem-informadas dentro e fora do Facebook.



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 14 de setembro de 2012.

Greve, Europa e mobilidade acadêmica internacional.


Desde o começo de 2012 se fala em greve geral dos professores nas universidades federais; o boato tornou-se realidade com a deflagração de um movimento grevista aderido por mais de 50 universidades.

A greve do servidor público é, em princípio, um meio legítimo de reivindicar direitos; e quanto a sua eficácia? O professor merece salário, respeito e condições de trabalho condizentes com a função social do magistério, além de outras demandas justas feitas pela classe, mas por quantas greves teremos que passar até lá?

Não entremos, contudo, no mérito da greve em si, que divide opiniões – e que bom que divide, pois da unanimidade devemos sempre desconfiar. O movimento, independente do rumo que tome, deve nos levar a uma reflexão sobre a nossa situação atual.

Pude vir, pela UFAM, para um semestre na Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Portugal. Além do proveito acadêmico, a experiência se fez valiosa pelo contato com um bloco em crise e sua visão acerca de onde venho. Brasil? Queremos ir para lá! Ouvi isso de toda a gente. E por que querem ir? Não é pelas praias, mas porque no Brasil há empregos.

Vi casos interessantes: em Barcelona, uma barista prestes a terminar o mestrado em Psicologia, sem perspectiva de sair do bar e exercer a profissão; em Praga, formandos com planos de ir ao Brasil trabalhar; em Munique, uma garçonete terminando o curso de Letras, sem saber o que fazer depois.

O professor universitário brasileiro é um gênero específico: tem que falar português (fluentemente, de preferência), entender as nuances sociais do país e passar ao aluno um ponto de vista crítico. São muitas exigências, e é por isso que o ensino superior no Brasil ainda não recebeu tantos estrangeiros quanto outras profissões.

Enquanto aqui há gente qualificada sem ter onde exercer seu diploma, no Brasil há vagas de professores vazias e professores sem motivação para buscar qualificação profissional. Quem quer ser professor sem ser reconhecido?

É preciso ter cuidado com essas comparações. Na maioria das universidades públicas da Europa, o ensino é pago. Cerca de mil euros por ano, por aluno: o dinheiro é aplicado no desenvolvimento da universidade e a própria atividade acadêmica gera renda e autossuficiência.

Então devemos refletir: é correto, por exemplo, uma Faculdade de Direito como a Jaqueira não possuir nem um curso de mestrado? Uma universidade como a UFAM ter salas em condições tão ruins? Bibliotecas desatualizadas? Falta de energia?

Ao comparar, pode-se ter a ilusão de que a Europa é o sonho de todo acadêmico. Bom, não é. Existem problemas lá e cá, mas o problema “professor mal pago” já foi deixado para trás na maioria dos países do ocidente europeu.

O que a Europa já aprendeu e o Brasil insiste em não imitar é que investimento em educação faz parte do crescimento econômico. Se pretendemos trilhar o caminho de uma potência mundial, trilharemos mancos enquanto não investirmos em ensino de qualidade.



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 25 de junho de 2012.

Que exame é esse?

Desde o anúncio da substituição do vestibular convencional pelo Exame Nacional do Ensino Médio como avaliação para o ingresso em universidades federais, a comunidade acadêmica tem feito diversas especulações sobre o conteúdo da prova e sobre como seria a nova abordagem das questões contextualizadas.

Como é de conhecimento geral, às vésperas de sua realização, o exame foi furtado, e, a partir daí, desencadeou-se um processo de efeitos colaterais desastrosos. O primeiro aspecto grotesco deste episódio começa pelo furto da prova: o que pretendiam os criminosos ao tentar vender a prova para um jornal? Sabe-se lá. O fato é que foi causado um prejuízo de 35 milhões de reais aos cofres públicos – conta que nós, pobres contribuintes, pagaremos.

Os danos originados do vazamento do Enem vão além do foro financeiro: e os vestibulares por todo o país que tiveram de remarcar suas provas? E as escolas que adiantaram todo o seu conteúdo programático para finalizá-lo antes do exame? Soma-se a isso um sentimento de vergonha, porque a culpa de tudo isso é da administração pública, que fiscalizou com tanto descaso a impressão de um documento desta relevância.

Contudo, o vazamento da prova trouxe um ponto positivo: todos nós podemos saber quais são os moldes em que o novo exame deverá vir e que “questões substanciais” ele deverá abranger, dentro do conceito tão falado das questões contextualizadas.

Infelizmente, o ponto positivo acaba aí, pois seguido à leitura da prova, vem um enorme sentimento de desespero. Então o ingresso em universidades de renome será embasado em questões assim? Toda a expectativa ao redor do novo vestibular ruiu, pois é inacreditável que o MEC queira trocar provas confiáveis por este instrumento de qualidade tão diminuída.

A nova prova deve ser reconsiderada. Não seria necessário, para obter uma boa pontuação, ter concluído o ensino médio. Para ter ido bem no Enem, seria necessário apenas ser alfabetizado e ter o mínimo de bom senso – e isso, como critério de admissão no ensino superior, é inadmissível.

Pode-se falar o mesmo da proposta de redação, que é vaga e mal fundamentada, visto que os textos de apoio são pobres de informação e de motivação ao candidato que pleitear uma vaga no “sistema unificado de ensino”. Além do mais, a prova parece testar a resistência física do candidato, pois é cansativa e possui muitos textos demasiadamente longos, tornando-se anti-funcional.

Avaliar-se-á a competência de um aluno para ascender à universidade de maneira tão rasa? A aplicação de um teste nacional que não atesta absolutamente nada sobre conhecimentos gerais será a sentença final de que o ensino no Brasil está fadado ao fracasso, e isso não se pode permitir.

A prova realmente traz temas que devem ser abordados. No entanto, são abordados de maneira absolutamente fraca. Desmatamento, tabagismo, educação, idade avançada, cultura brasileira... A despeito dos temas, a amplitude do exame não deveria permitir a elaboração de questões beirando o ridículo. Se forem questões sobre as quais se pode discursar independente do grau de instrução, aonde foi a meritocracia que rege o ingresso numa instituição federal?

Não posso criticar construtivamente as questões de ciências exatas, por não ser minha seara, mas posso dizer que não eram as mais difíceis. Quanto às questões de ciências humanas, comentários acerca de sua carência de conteúdo são dispensáveis. Convido todos a fazerem o download da prova no site do Inep e a se deliciarem com a nova educação brasileira. 



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 18 de outubro de 2009