domingo, 26 de maio de 2013

A química do assistencialismo

No último final de semana, um boato sobre o fim do Programa Bolsa Família se espalhou por 12 estados brasileiros, levando milhões de pessoas ao desespero. Segundo o boato, os beneficiários deveriam sacar até o sábado qualquer quantia que tivessem recebido, porque este seria o último depósito feito pelo governo antes da suspensão do benefício. O resultado foi o caos nas agências da Caixa Econômica Federal, que tiveram até terminais eletrônicos depredados e precisaram, em alguns casos, do auxílio policial, para que contivessem as multidões.

O Bolsa Família é um programa muito importante. Para o governo, é claro, em razão de determinadas finalidades eleitoreiras; mas, sobretudo, é importante para as pessoas que dele dependem, e que talvez estivessem em miséria se não contassem com esta verba. De fato, este programa tem socialmente feito um grande bem pelo país. Portanto, é natural que um boato sobre o fim do benefício – piada de péssimo gosto, diga-se de passagem – cause tanto desespero nas pessoas.

Como vários outros programas sociais, o Bolsa Família é uma medida de emergência. É muito simples de entender: há a miséria, e a melhor forma de combater a miséria é com educação de qualidade, economia vigorosa, geração de emprego e renda etc.; mas isto não se consegue do dia para a noite, e é aí que entra o Bolsa Família. O governo distribui renda, dá o pontapé inicial para que as pessoas tenham melhores condições de vida e, quando elas já estiverem caminhando com as próprias pernas, cessa o benefício.

No entanto, “dar melhores condições de vida” não significa só depositar em conta corrente o valor do Bolsa Família. “Dar melhores condições de vida” é fazer com que as pessoas saibam ler e escrever, é valorizar o professor da rede pública de ensino, é investir em transporte público e outras coisas mais. Da maneira como estamos, quanto tempo durará o Bolsa Família? É um benefício social eficaz, mas que deveria ser extinto tão logo cumprisse sua função; o problema é que, sem investimento em outras áreas sociais, não é cedo que sua função se cumprirá.

É neste ponto que o episódio do boato sobre o Bolsa Família deve ser pedagógico. O desespero das pessoas que acreditaram na mentira demonstra que elas ainda não estão preparadas para deixar de recebê-lo, o que é natural, já que o programa tem apenas dez anos; e nos mostra que essa “dependência química” que o Bolsa Família gerou – a dependência química de uma substância muito perigosa chamada “assistencialismo” – deve ser tratada com investimentos que possibilitem um desenvolvimento social autônomo, livre de mesadas do governo.


Vicissitudes à parte, na administração do programa e nos fins políticos de sua manutenção, se o Bolsa Família promove a extinção da miséria, então é um programa que tem seu valor. Por outro lado, se é um programa que gera esta “dependência” nas pessoas, e que não está sendo realizado concomitantemente com pesados investimentos em educação, então deve ser repensado. Que o repensemos, portanto.



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 25 de maio de 2013.

sábado, 18 de maio de 2013

Parabéns à Defensoria Pública


Amanhã, dia 19 de maio, é o Dia Nacional da Defensoria Pública, e esta instituição merece todas as homenagens, em especial a Defensoria Pública da União, por ser o que é, fazer o que faz, e exercer o acesso à Justiça nas condições em que atualmente o exerce. Curiosamente, nas faculdades de Direito, o acadêmico costuma se ver como um futuro juiz, promotor ou advogado, mas raramente cogita em fazer carreira como defensor público, e este sutil esquecimento é uma das razões pelas quais é importante mostrar à comunidade a importância deste órgão.

Sem desmerecer o Superior Tribunal de Justiça, cujo slogan é “o tribunal da cidadania”, penso que o verdadeiro órgão da cidadania no país seja a Defensoria Pública, simplesmente por sua essência. No Brasil, bem como em muitos outros lugares, a única forma de obter determinados direitos é pela via judicial, e, para aqueles que não têm como pagar um advogado e as despesas do processo, a Defensoria é o elo que liga o direito ao seu titular, e muitas vezes é necessária a sua intervenção para que uma pessoa exerça direitos que ela obviamente tem, como o de receber uma pensão alimentícia ou de retirar um valor de FGTS bloqueado. Ainda, a mera existência da Defensoria é importante para que o indivíduo, carente de informações, saiba que ele tem “direito a ter direitos”.

Esta missão institucional – a de deixar a “Justiça ao alcance de todos” – é fundamental para que a desigualdade social se amenize ou caminhe para um fim. Não basta o assistencialismo barato, de distribuir cesta básica e dinheiro; é preciso distribuir Justiça, e só se pode fazê-lo com auxílio da Defensoria Pública. É imprescindível, portanto, que esta instituição seja fortalecida.

Neste sentido, cabe aqui o parabéns em especial à Defensoria Pública da União, e a todos os defensores públicos federais, justamente por exercerem o acesso à Justiça nas condições em que o exercem. Atualmente, existem apenas 471 defensores públicos federais em todo o Brasil, e, destes, apenas 7 estão lotados no Estado do Amazonas. Pior: a DPU não possui autonomia funcional, administrativa e iniciativa de proposta orçamentária, e isto significa que há enorme dificuldade, por exemplo, para a aquisição de sede própria, realização de concurso público ou mesmo coisas mais simples, como o reajuste da bolsa dos estagiários.

Em suma, os defensores públicos federais têm o dever de não só defender os direitos daqueles que foram esquecidos pelo restante da sociedade, mas também o de lutar por condições de trabalho que sejam condizentes com a posição que ocupam e com a missão que lhes é dada pela Constituição Federal. A essas vozes, a voz da população também deve se juntar, a fim de que esta instituição tão importante ganhe força.

Neste próximo dia 19 de maio, que a luta por uma Defensoria Pública mais forte (e, consequentemente, uma Justiça mais igualitária) continue, ganhando vigor. Afinal, a Justiça não será Justiça enquanto não estiver verdadeiramente ao alcance de todos.



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 18 de maio de 2013.

sábado, 11 de maio de 2013

A que ponto podemos chegar?


Há cerca duas semanas, as redes de televisão e jornal transmitiram, diretamente do Kentucky (EUA), a notícia de que um menino de 5 anos havia disparado um tiro de rifle contra sua irmã de 2 anos, que faleceu imediatamente. A arma, que já era do menino e havia sido dado a ele por seus pais, fazia parte de uma linha de rifles fabricada especialmente para crianças, chamada “Meu Primeiro Rifle”; segundo o legista da cidade, o episódio foi um destes “acidentes loucos”.

A notícia acima, veiculada nas maiores agências de comunicação do mundo, possui vários traços de anormalidade. O primeiro, obviamente, é o fato de uma criança de 5 anos, independentemente das circunstâncias, ter ceifado a vida de sua irmã de 2 anos. Depois, o fato de tê-lo feito (i) com uma espingarda, (ii) que lhe fora presenteada por seus pais, (iii) de fabricação específica para crianças, (iv) e que resultou numa fatalidade banalmente considerada como “acidental” pelos familiares e amigos da vítima e seu irmão.

Neste caso, volta à baila a discussão sobre o desarmamento, e se é pertinente ou não que a sociedade civil tenha acesso a diversos tipos de armas. Francamente, até que há argumentos plausíveis tanto para aqueles que defendem o desarmamento, quanto para aqueles que defendem uma sociedade armada até os dentes. No entanto, a que ponto podemos chegar quando a ofensividade de uma arma de fogo é simplesmente esquecida? Rifles para crianças? Parece brincadeira.

Defender que uma sociedade possa se armar, caso queira, é até aceitável; contudo, esta opinião não pode se escusar do manto da razoabilidade. É razoável que os pais deem para um filho de 5 anos um rifle carregado e em pleno funcionamento? É razoável que uma empresa, em um país minimamente sério, fabrique rifles destinados ao público infantil sem que isso lhe cause maiores problemas? É razoável que este episódio seja encarado como um destes “acidentes loucos”, em que o resultado vence o improvável? Não, não é; seria até previsível que algo fosse dar errado.

A morte da pequena Caroline Starks, de 2 anos, não foi um mero “acidente louco”, mas um desastre causado pela leviandade no trato com a vida. É evidente que, ao entregar uma quantidade enorme de armas nas mãos de pessoas despreparadas, esse tipo de “acidente” aconteça; e então ele deixa de ser acidente e passa a ser pura e simples irresponsabilidade.

Coitado de seu irmão, de 5 anos, que certamente ainda não entendia – pelo menos não até ter matado a própria irmã – toda a potencialidade lesiva daquela arma colorida (pois que fique bem claro: a linha de rifles fabricada para crianças é até mesmo colorida!). Coitados dos pais que, achando normal dar um rifle de presente ao filho menor impúbere, perderam a filha. Coitada da sociedade americana, que mais uma vez teve de passar por um destes “acidentes loucos”, e que poderia ter sido evitado. Que este triste episódio sirva de reflexão, para que aprendam de uma vez: arma não é brinquedo.



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 11 de maio de 2013.

sábado, 4 de maio de 2013

Mil pessoas para conhecer...


No mercado editorial, há uma série de livros de coisas para se fazer antes de morrer. Há os “mil lugares para conhecer antes de morrer”, os “mil filmes para assistir antes de morrer”, os “mil discos para escutar antes de morrer”, os “mil vinhos”, “mil quadros”, e por aí vai, para todos os gostos e hobbies. Infelizmente, dificilmente teremos tempo ou dinheiro para ver, provar, escutar ou assistir estas milhares de coisas.

No entanto, se há um “milhar” que nós podemos conhecer de graça, além dos filmes e músicas ilegalmente baixados da internet, é um milhar de pessoas. Cada um deveria ter sua própria listinha de “mil pessoas para conhecer antes de morrer”, sem que nela estivessem listados nomes, mas apenas características. Todos, antes de morrer, deveriam conhecer um grande amor, um artista de circo, um sonhador, uma chef de cozinha ou um turista aventureiro. Ora, que melhor jeito de conhecer o mundo do que conhecer as pessoas do mundo?

Certa vez, em razão de participar de uma espécie de programa de intercâmbios, recebi um pedido de um rapaz do Rio de Janeiro para que eu hospedasse quatro amigas suas que estavam em Manaus e não tinham para onde ir. Não pude hospedá-las em minha casa, mas, diante da imagem de quatro moças indefesas perdidas pela cidade, liguei para um amigo meu e sugeri que as hospedasse, em nome da caridade e de uma experiência nova – hospedar desconhecidas! – que seria, pelo menos, educativa. Pois bem, ele aceitou.

Eis que, no dia seguinte, depois das tratativas iniciais, as quatro mulheres chegaram à casa de meu amigo. Duas ex-estudantes de antropologia da Espanha, que tinham resolvido viajar pelo mundo, no melhor estilo “turista aventureiro” na busca pelos “mil lugares para conhecer antes de morrer”; uma da Noruega, de quem não se soube muito; e uma de Volta Redonda, formada em Psicologia pela UERJ, mas que também tinha resolvido sair viajando pelo mundo.

As moças ficaram em Manaus por três dias, período durante o qual ouvi as lamúrias de meu amigo, a me contar o tamanho da enrascada em que eu o pusera: pelo que dizia, as moças haviam trazido consigo um cheiro fortíssimo, agravado pelo fato de não tomarem banho um dia sequer desde sua chegada, muito embora todas as facilidades higiênicas tivessem sido oferecidas. “Muy amigo, Paulo!”, ele dizia.

Depois que as moças foram embora, sabe-se lá para onde, visitei este meu amigo e pude constatar que suas lamentações eram verdadeiras: ele havia investido boa quantia em dinheiro em incensos e aromatizantes de ambientes para tentar livrar seu apartamento do “espectro” de cachorro-molhado deixado pelas meninas e que empestava quarto, sala e cozinha.

A lista das “mil pessoas para conhecer antes de morrer” de meu amigo já teve seu início, e dela já se pode riscar os “turistas aventureiros”, partindo, enfim, para que conheça um grande amor, um artista de circo, um sonhador etc. Tudo isso, é claro, não sem uma grande lição: as próximas 999 pessoas devem, indispensavelmente, gostar de tomar banho!



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 4 de maio de 2013.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

O "juridiquês" no acesso à Justiça


Todo mundo conhece alguém que tem um problema na Justiça. As pessoas normalmente contratam um advogado ou correm para a Defensoria Pública, explicam o problema, dão os documentos necessários, assinam uma procuração e pronto: aquele sujeito cuidará de tudo. No entanto, ninguém se contenta somente com entregar o problema nas mãos do advogado e “deixar para lá”. É preciso mais: as pessoas querem Justiça, e sempre desejam saber em que pé está o seu processo, o seu problema, a sua situação.

A partir daí é que o “juridiquês” começa a aparecer nas nossas vidas: é “extra petita” para cá, “tutela antecipada” para lá, “vício redibitório” aqui, “sobrestamento” ali, e, no final das contas, a pessoa mais interessada no processo – quem entrou com a ação ou dela está se defendendo – não entende mais nada do seu problema, nem o que seu advogado disse, nem o que advogado da outra parte disse, e muito menos o que o juiz decidiu.

É normal que cada área tenha uma linguagem técnica específica, e no Direito não é diferente: como todos, utilizamos códigos que facilitam a comunicação entre quem está atuando em um processo. Mas até que ponto isto não atrapalha o acesso à Justiça?

Na década de 1970, o jurista italiano Mauro Cappelletti lançou o livro “Acesso à Justiça”, em que defendia que haveria três “ondas de renovação” do acesso à Justiça, no sentido de uma prestação jurisdicional mais justa e próxima do povo. A primeira onda de renovação da Justiça seria trazê-la para perto dos mais pobres, porque os custos de ter um processo na Justiça eram muito altos. No Brasil, isso está sendo resolvido com o crescimento das Defensorias Públicas, que prestam auxílio jurídico para os hipossuficientes.

O segundo momento seria o da defesa dos direitos difusos e coletivos, que são aqueles direitos defendidos pelo Ministério Público e que, quando violados, prejudicam a sociedade ou parte de seus integrantes. A terceira onda de acesso à Justiça, por fim, seria aquela em que o Poder Judiciário se preocuparia em atender melhor o jurisdicionado, ou seja, os seus “clientes”. Nesse sentido, cabe fazer uma breve reflexão sobre o “juridiquês”. Mesmo sendo uma linguagem necessária ao Direito, será que ele não pode ser dispensado ou flexibilizado em algumas situações, para que a Justiça não só seja feita, mas seja também conhecida e entendida?

Gerivaldo Alves Neiva, juiz de Direito da Bahia, deu uma bela lição à comunidade jurídica em 2005, quando proferiu uma sentença que ficou conhecida como “sentença para marceneiro ler”. No texto da sentença, o juiz não usa qualquer expressão em latim, e desenvolve os fatos e o direito como quem conta uma história para um amigo. Ao invés de falar “arquivem-se os autos”, diz para a Secretaria “guardar o processo bem guardado!”, e que aquela era uma sentença para ser entendida por um homem simples. O “juridiquês” tem seu valor e até sua beleza, mas não poderia a Justiça estar mais próxima da simplicidade? Cabe a reflexão.



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 27 de abril de 2013.