terça-feira, 22 de outubro de 2013

Um caso, um problema

Durante a elaboração de uma peça jurídica, como um parecer, sentença ou petição, costuma-se colar” no corpo do texto algumas decisões judiciais que favoreçam o argumento que está sendo sustentado, a fim de “engrossar o caldo” da retórica utilizada. É o que chamamos de “colocar jurisprudência”, com o objetivo de demonstrar que a tese defendida está de acordo com o posicionamento atual dos tribunais do país.

Na hora de buscar estas decisões – no Google, por exemplo –, não raro encontramos casos judicias que não têm nada a ver com aquilo que estamos procurando, mas que são dignos de nota e lembrança. Numa destas pesquisas, quando procurava algo sobre dano moral, encontrei um curiosíssimo julgado do Superior Tribunal de Justiça, cujo resumo estava disponibilizado mais ou menos assim: “Pênalti não marcado. Compensação por danos morais decorrentes de erro de arbitragem. Incabível. Não se pode cogitar em danos morais ao torcedor pelo resultado indesejado da partida. O dano moral não se confunde o mero dissabor pelo resultado do jogo, situação inerente à paixão futebolística. Recurso não provido”. Trata-se do Recurso Especial n. 1296944/RJ.

O que isso significa, afinal? Em breves palavras: na Copa do Brasil de 2007, durante um jogo entre Atlético Mineiro e Botafogo, o árbitro da partida errou ao não marcar um pênalti a favor do Atlético-MG, e, após o apito final, o Botafogo (pasmem!) acabou se classificando para a fase subsequente. No dia seguinte, em entrevista, o próprio árbitro admitiu o erro, e disse que a situação era clara: a penalidade máxima deveria ter sido marcada.

Inconformado, um torcedor do Atlético ingressou na Justiça contra a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), em razão de supostamente ter sofrido danos morais com a desclassificação de seu time, o que teria acontecido por causa do erro de arbitragem. O pedido foi negado em todas as instâncias, por motivos de sobra no âmbito do Direito... E do futebol, em que estas “injustiças” são corriqueiras e fazem parte do mundo da bola.

A demanda nos revela várias coisas. Primeiro, é que estamos realmente no país do futebol, em que a mais importante Corte se dispõe a julgar, sobretudo com certo zelo, uma causa tão boba. Segundo, e mais importante, é que ainda subsiste entre muitas pessoas a cultura da “indústria” do dano moral, em que se pretende enriquecer alegando, em juízo, algum prejuízo moral exorbitante causado por empresas ou pelo Estado.

Felizmente, os juízes têm rechaçado estes pedidos inusitados ou exagerados, que geram injustiça (como enriquecimento sem causa, quando um sujeito recebe indenização muito além do razoável) e também atrapalham a Justiça, abarrotando os fóruns de processos e contribuindo para a lentidão de que tanto reclamamos. Aparentemente este problema não está com os dias contados, e deve persistir por mais alguns bons anos: pelo menos não é algo tão grave assim e, no final das contas, até que rende umas boas risadas e boas discussões. E então: pênalti gera prejuízo moral?


Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 19 de outubro de 2013.

Os 25 anos da "Cidadã"

Em outubro de 1988, há cerca de 25 anos, Ulysses Guimarães, então Presidente da Assembleia Constituinte, erguia perante o Congresso Nacional e o povo a nova Constituição da República Federativa do Brasil, carinhosamente apelidada de Constituição Cidadã. Hoje, apesar das inúmeras crises pelas quais o país passa – cite-se, por exemplo, uma severa crise política e de legitimidade –, ainda há motivos para comemorar este jubileu de prata.

A nossa Constituição sempre deixa os nervos à flor da pele, até mesmo quando se comemora seu aniversário: nesta última semana, a Câmara dos Deputados outorgou mais de mil medalhas comemorativas para aqueles que foram personagens decisivos do processo de redemocratização e constitucionalização do Brasil. Entre os agraciados, José Genoíno, deputado federal condenado pelo Supremo Tribunal Federal por corrupção ativa e formação de quadrilha. Não sei exatamente por qual motivo, mas me parece que o aniversário da Constituição não poderia passar sem que houvesse uma incongruência dessas.

Mesmo assim, devemos fazer desta data (que na verdade foi semana passada, em dia 5 de outubro) um momento de felicitação. De 1988 até aqui, a Constituição passou por várias mudanças e sofreu críticas; no entanto, é inegável que a Carta Cidadã foi um documento essencial para os avanços que o país vivenciou nos últimos anos.

Apenas por exercício argumentativo, dou um exemplo: o Brasil constitucionalizou um sistema de saúde totalmente gratuito, integral e acessível a todas as pessoas (art. 196), nacionais ou estrangeiros. É verdade que a saúde pública não funciona perfeitamente, mas apenas esta opção do legislador constituinte já significa uma grande vantagem para a população, que muitas vezes, mesmo através do Judiciário, obtém a cura de suas moléstias, graças à Constituição.

Certa vez, em tom de chiste, o Ministro Luís Roberto Barroso disse que a Constituição de 1988 tinha uma solução para tudo: só não trazia a pessoa amada em três dias. Uma verdade disfarçada de gracejo: nossa Lei Fundamental tratou de muitos assuntos que não precisariam ser tratados por ela, até mesmo constitucionalizando o Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro (art. 242, §2º). Seria este um defeito? Particularmente, reluto em apontar “defeitos” na Constituição: penso que ela possui muitas vicissitudes e peculiaridades, que fazem dela um documento único.


Dizem também que a Constituição é uma colcha de retalhos, emendada até seu último fio de cabelo. Não posso discordar do fato de que a nossa Carta Política fora “remendada” inúmeras vezes nestes últimos 25 anos; contudo, não é de se concluir que isto seja algo necessariamente ruim. Penso que faz parte do que é a essência da Constituição, dado ser uma Constituição à brasileira: retalhada, colorida, carioca; uma Constituição bossa-nova, uma Constituição feijão-com-arroz, e por aí vai. Que ela – que, afinal, tem a nossa cara – tenha um feliz aniversário, com mais respeito ao seu texto e mais efetividade às suas normas. Parabéns!


Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 12 de outubro de 2013.

O motorista-guerreiro

O site da revista Superinteressante possui inúmeras matérias sobre o trânsito, entre críticas, soluções e novas ideias para melhorar este problema que aflige grande parte dos brasileiros. Numa destas matérias, a revista atesta que o trânsito no Brasil parou, e aponta a solução:pôr a cabeça para funcionar. Não poderia deixar de concordar.

É verdade que a expressão, no contexto da matéria, possui o significado de repensar e reorganizar o trânsito das grandes cidades. Não pude deixar de concluir, contudo, que a maioria dos problemas do trânsito está mesmo no comportamento (acabeça, portanto) dos motoristas. Logo, seria o caso de inevitavelmentepôr a cabeça para funcionar.

O primeiro e grande passo talvez seja abandonar a cultura da guerra no trânsito e do motorista-guerreiro. Não, o trânsito não é uma guerra, ao contrário do que muitos pensam; e não, o automóvel não é um carro de batalha, destinado a vencer tudo e todos no trajeto de casa para o trabalho. Digo mais: abandonar a cultura da guerra no trânsito é essencial justamente porque se trata de uma simples questão de educação doméstica, valor que está em falta nas ruas do país.

Confesso que o que me motivou a escrever este artigo foi o acontecimento de alguns episódios (ou melhor, rotinas) por quais passo no trânsito de Manaus, e que explicam muito bem o que é a cultura e o comportamento do motorista-guerreiro. Relato. A primeira delas é quando, durante um engarrafamento, tenta-se mudar de faixa. O motorista liga educadamente o pisca-alerta, espera pacientemente a oportunidade de fazer a mudança, e esta oportunidade jamais aparece, porque os motoristas da outra faixa insistem em avançar e impedir a transição, sem qualquer motivo aparente.

Qual é o custo de ser educado? Aliás, qual é a dificuldade em ser educado? As ruas estão cheias de palavrões e buzinadas desaforadas, mas pouco se ouvedesculpe,por favoreobrigado. Trata-se de um ambiente insalubre em que, enquanto cada um se encerra em seu carro e em suas necessidades, pouco importa o outro ou a coletividade. Dentro de um carro, independente da pressa cotidiana de todos, é sempre o compromisso do próprio motorista o mais importante, jamais se cogitando que talvez o motorista ao lado também esteja aflito, com pressa, prestes a perder algo importante etc.

E os retornos em locais proibidos? E os carros nas calçadas? E aqueles que jamais param na faixa de pedestres? A propósito, e os pedestres que atravessam a rua debaixo da passarela? Estes comportamentos, que poderiam ser resolvidos com um mínimo de educação e consideração, fazem do trânsito uma verdadeira guerra; e de seus motoristas, verdadeiros guerreiros.


Que fique o apelo para que surja omotorista-amigo, em detrimento domotorista-guerreiro; que surja o motorista tolerante, ao invés do motorista impaciente; e, por fim, que o trânsito deixe de sersenão totalmente, pelo menos um pouco!este lamentável ambiente de guerra.


Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 5 de outubro de 2013.

Dignidade no fim da vida

O Direito sempre vai “à reboque da sociedade”. Significa dizer que, à medida que a sociedade vai evoluindo e trazendo à tona novas realidades, o Direito vai se modificando e se moldando para atender às demandas que surgem. É fácil exemplificar: só passou a existir o Código de Trânsito Brasileiro muitos anos depois da invenção do automóvel e de sua intensa utilização no Brasil. Ou seja, o Direito acompanhou posteriormente um avanço do cotidiano.

Com os avanços tecnológicos de hoje, é possível perceber essa tendência de modernização do Direito com muito mais facilidade. Para explicar de modo claro, pode-se mencionar a recente “Lei Carolina Dieckmann”, sobre crimes virtuais. Os crimes virtuais já existiam há muito tempo, mas só depois da exposição de fotos íntimas da atriz Carolina Dieckmann é que o legislador brasileiro produziu algo para punir esta conduta.

Não só a tecnologia é capaz de produzir mudanças que geram novos direitos, mas, principalmente, a Medicina. A propósito, justamente por lidar com a vida humana é que a Medicina e seus avanços exercem especial influência sobre o surgimento de novos direitos e de mudanças de paradigmas em relação ao indivíduo em sociedade. É seguro dizer que muitos anos atrás a maioria das mortes com causa natural acontecia em função de alguma cardiopatia. No entanto, pela descoberta de novos tratamentos e remédios, houve a diminuição das mortes naturais causadas por doenças de coração e os homens, ainda que tivessem uma vida mais longa, passaram a ter outras doenças, como o câncer, que causa mortes mais lentas e penosas.

Neste contexto de “prolongamento” do viver, em que várias pessoas ao longo dos anos viram-se definhando em camas de hospitais, sem expectativa de retomar a qualidade de vida, surge um tal “direito à morte”. Quando seria a hora certa de cessar a existência? Essa hora existe? O tema não é tão novo, mas não é muito debatido no Brasil, por se tratar de um tema muito polêmico e que envolve conceitos como a eutanásia, ortotanásia, distanásia e suicídio assistido.

A morte é um acontecimento intrínseco à vida, sobretudo quando a idade avança para além dos horizontes da independência física e mental. O homem, contudo, custa muito a aceitar a ideia de “morte” como algo normal. Cabe aqui fazer referência ao título deste artigo: “dignidade no fim da vida”. Não se trata simplesmente de morrer, porquanto a morte pode chegar, infelizmente, ainda na juventude. Trata-se de aceitar que a vida vai chegando ao fim, e que é melhor que este seja de modo digno.


Tema espinhoso, não? O assunto é tratado sob uma perspectiva bastante interessante no filme americano “You Don’t Know Jack”, sobre o médico Jack Kevorkian (interpretado por Al Pacino, por sinal), que defendeu o suicídio assistido nos EUA na década de 1990 e foi até mesmo apelidado de Dr. Morte. Evidentemente, não é uma temática “amena”, mas não faria mal que a sociedade debatesse: existe fim da vida com dignidade?



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 24 de agosto de 2013.

Pobre consumidor manauara

O mundo de vez em quando se organiza em dicotomias, importantes ou não: “homem x mulher”, “Flamengo x Vasco”, “direita x esquerda” e por aí vai. Há uma em particular, no entanto, que é muito importante e diz respeito a todas as pessoas da vida civilizada: a dicotomia “consumidor x produtor”. Esta se encaixa na categoria das dicotomias que não se justificam, porque consumidor e produtor não são partes que devam se opor, mas, antes, que devam se satisfazer mutuamente. Afinal, um só existe em função do outro.

No Brasil, assim como em muitos lugares do mundo, essa oposição entre consumidor e produtor é acentuada pelo modo como muitas empresas resolvem tratar o consumidor, desrespeitando direitos básicos com o intuito de ganhar mais dinheiro. Veja-se: existe uma seção do site do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que lista os 30 maiores litigantes em processos judiciais, e lá há mais de dez bancos, pelo menos seis empresas privadas de telefonia móvel, algumas grandes lojas de departamentos e também empresas de TV por assinatura.

Por que os números são assim? Porque é muito mais vantajoso desrespeitar o consumidor, ganhar dinheiro e depois pagar alguns advogados para mitigarem o dano do que evitar isso tudo, já que nem todo consumidor desrespeitado vai a juízo. Em suma, o “crime”, em relação ao consumidor, compensa. Em Manaus, a situação é um pouco diferente. Embora o consumidor manauara tenha problemas com as grandes empresas, tanto quanto qualquer consumidor brasileiro, o “carro-chefe” das nossas decepções consumeristas é o despreparo dos lojistas e o descaso dos vendedores (fala-se, é claro, da maioria, e é justo registrar aqui que há estabelecimentos em que o consumidor é incrivelmente bem atendido).

Não tratar bem o consumidor é puro amadorismo e falta de vontade de ganhar dinheiro, já que o consumidor satisfeito recomenda o lugar onde foi bem atendido, dá gorjeta e volta, para prestigiar o tratamento que recebe. À guisa de exemplo, certa vez, em uma viagem, entrei em uma loja e, depois de atendido por um vendedor, a loja me ofereceu uma cerveja. Por que não? É algo ligeiramente mais divertido que uma água ou um cafezinho, não custa muito dinheiro e cativa o cliente. Por que ninguém pensou nisso antes? Em Manaus, o consumidor entra em uma loja e inicia a “caça ao vendedor”, até que alguém finalmente se disponha a atendê-lo.

A culpa do despreparo é dos vendedores? Obviamente, sim, mas somente em análise prévia. Em último caso, a culpa da má qualidade do serviço é do empresário, que não fiscaliza o bom atendimento a seus clientes, não investe em treinamento para a sua equipe, não se preocupa em contratar funcionários motivados a trabalhar com qualidade etc. Aliás, a preocupação poderia ser resumida precisamente nisto: trabalho com qualidade.
Enquanto isso não acontece, o comércio manauara vai ganhando a fama de mal-educado, o consumidor perde em qualidade, o fornecedor perde em dinheiro e todos nós perdemos em bem-estar. Que tal mudar isso aí?



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 10 de agosto de 2013.

Gente chata

Há uma frase destas que circula pela internet, ilustrada por um personagem da Turma da Mônica, que diz assim: “O problema não é você ser ateu, cristão, budista, macumbeiro, espírita, gay ou seja lá o que for. O problema é você ser chato”. Após as devidas reflexões, cheguei à conclusão de que o mundo é habitado por uma imensidão de gente chata, simplesmente. Digo isto pelo tom que alguns “protestos” tomaram quando o Papa Francisco passeou por nossas terras, há pouco tempo.

Durante a Via Sacra, revoltosos de Copacabana entoaram gritos de guerra do tipo “eu beijo homem, eu beijo mulher / a minha boca pode beijar o que eu quiser!”. O perfeito exemplo de gente chata. Que tipo de pessoa sai do conforto do seu lar para ir se manifestar contra uma procissão de fé, que não faz mal a ninguém? É louvável quem vai às ruas entoar palavras de ordem contra a corrupção, contra a péssima gestão do governo e tudo mais, mas contra... O catolicismo? No que a crença religiosa particular de cada um pode motivar um protesto?

Dias depois destes episódios, o Papa Francisco deu a seguinte declaração: “se a pessoa é gay, procura a Deus e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?”. O Papa, evidentemente, não faz parte do grupo de “gente chata” e extremista que faz com que este tipo de discussão ganhe volume. De fato, o que há de contraditório entre o catolicismo e a orientação homossexual? Obviamente, nada. Cada qual que, católico ou gay, seja-o em seu canto, em paz, e sem incomodar os outros.

Se há debates sobre casamento, aborto e outras questões afins, e estes debates geram discussões em que se envolvem religiosos e homossexuais, isto é outra história. Em todo caso, deve haver respeito. A propósito, deve haver respeito em dois sentidos: primeiramente porque o episódio que relatei ocorreu durante a visita do Papa, que é o Chefe de Estado do Vaticano, o “menor país do mundo”. Ou seja, é uma conduta diplomática não desrespeitá-lo. Em um segundo momento, deve-se atentar para o fato de que a liberdade religiosa é garantida pela Constituição Federal, e a violação desta liberdade, em vários aspectos, constitui crime.

Protestar é ok. E manifestar-se contrariamente a uma determinada religião? Até aí, guardado o bom senso, também não há problema. O problema surge quando, como demonstrado por inúmeras reportagens, indivíduos começam a fazer insinuações obscenas com crucifixos e destruir, jogando ao chão, imagens religiosas. Qual é a necessidade disto? Entendo que o objetivo destes “protestantes” é combater a intolerância, mas não se pode lutar contra a intolerância sendo ainda mais intolerante.


Essa gente intolerante – ou, como eu disse, essa gente chata – é que amarga todos os bons debates polêmicos que são fundamentais para o saudável desenvolvimento de uma sociedade democrática. Eis o importante: ter a sua própria ideia e defendê-la, sem, no entanto, ofender ninguém que dela discorde. É preciso evitar, em verdade, a propagação desta gente chata.



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 3 de agosto de 2013.