sábado, 28 de dezembro de 2013

Sobre retrospectivas

Passa o Natal, vem chegando o réveillon, e as “retrospectivas 2013” se intensificam, como sempre ocorre em todos os dezembros, todos os anos. Em mídia escrita e televisiva, apresentadores falam da visita do Papa, das condenações do mensalão, da venda de Neymar ao Barcelona, das manifestações que avassalaram o país, dos agraciados pelo Oscar e pelo Nobel e por aí vai. Resumindo: dezembro é a celebração da memória humana por meio de grandes retrospectivas.

A memória humana, a propósito, é algo incrível, e aqui vale uma pequena digressão. Minha avó materna, com idade já avançada, possui certa dificuldade para se comunicar, lembrar a fisionomia dos netos e genros mais distantes etc., como é comum nesta fase da vida. Contudo, inquirida sobre qualquer operação matemática de multiplicação ou divisão, demora pouquíssimos segundos para dar a resposta certeira. Igualmente, certo dia uma de minhas primas colocou na sua frente um pequeno teclado de brinquedo, no qual ela habilmente tocou as primeiras notas da 9ª Sinfonia de Beethoven com precisão. E há décadas não sentava ao piano!

Talvez seja por isso que tantas retrospectivas são feitas todos os anos, porque nossa memória tenha algo incrível e também de traiçoeiro: esquecemos fatos, nomes, rostos; e lembramos, noutro giro, sabores, movimentos, respostas. Quem seleciona, na organização da mente, as gavetas de lembranças que abrem com facilidade e as que emperram, fechando-se eternamente? É capricho de deus ou da álea? Pela dúvida, a ordem é rememorar. Daí se faz retrospectivas.

Há um outro motivo importante: erramos sempre as mesmas coisas. Um dos objetivos da História é documentar nossos erros e acertos, a fim de que possamos eliminar os primeiros e reiterar os últimos. Assim funciona uma retrospectiva também, já que certamente veremos no que governo vacilou, ao aumentar juros aqui e acolá; e como o “brasileiro médio” acertou ou errou, ao investir em um ou outro investimento etc.

Por fim, a última (ou pelo menos a última que consigo lembrar) razão de ser das retrospectivas é nos dar a impressão de que a vida é feita de ciclos. Termina 2013, inicia-se 2014, um novo “ano”. Evidentemente, fatiar o tempo em dias, semanas, meses e anos foi uma ideia incrível, pura invenção humana. O tempo, na realidade, é um só do começo ao fim, e o homem teve a iniciativa de dividi-lo em etapas porque a sensação da contundente imposição eterna do tempo seria insuportável. Com a vida devidamente separada em anos, temos a oportunidade de fechar ciclos ruins e começar ciclos bons; caso contrário não poderíamos.


Aproveitemos, então, as fatias do tempo em ciclos. Que os demônios de 2013 fiquem aqui em 2013, junto com suas frustrações, desilusões, desistências e desesperanças. E que em 2014 se possa trazer à memória nossos erros e acertos, com ajuda de deus ou do acaso, para que se inicie e se feche um ciclo bom. Feliz ano novo!



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 28 de dezembro de 2013.

sábado, 21 de dezembro de 2013

O Natal e os três homens cegos

O Natal é, ao mesmo tempo, uma data religiosa e um fato social. É uma data religiosa porque simboliza o nascimento de Cristo para as religiões cristãs; e é um fato social porque o Natal se impõe a todos independentemente da crença religiosa de cada um. É verdadeiramente impossível, pelo menos no Brasil, não “passar pelo Natal”, mesmo não sendo cristão.

Se ele tem significado bem definido para a cristandade, então o que resta àqueles que só o percebem como um “fato”, e não como uma data religiosa? Em outras palavras: qual o significado do Natal para ateus e pessoas de outras religiões? Fatalmente será um significado ligeiramente diverso do que é dado pelo cristianismo, mas não menos nobre.

 John Hicks, filósofo contemporâneo, trata da diversidade de religiões através da narrativa sobre a percepção sensorial de três homens cegos ao descreverem um elefante. A literatura filosófica, ao longo dos anos, desenvolveu outras histórias baseadas na mesma premissa, e eu peço licença para humildemente utilizar a minha, e não a original, que está disponível na internet. Imaginemos, pois, dois homens cegos, e não três.

Dois homens cegos são levados para o Encontro das Águas, tendo lhes sido dito somente que iriam para um rio, sem que soubessem qual. Lá chegando, cada um pulou de um lado do barco, nadou um pouco e depois voltou à embarcação. O cego que havia pulado no rio Negro descreveu a experiência de nadar em um rio com águas leves, de temperatura um pouco mais elevada; o cego que pulara no rio Solimões discordou, e narrou que tinha pulado em um rio um pouco mais frio, com águas pesadas e provavelmente barrentas. Cada um dos dois atestou, irredutivelmente, o acerto próprio e o erro do outro.

Algum deles está incorreto? Evidentemente, não. Assim é que John Hicks defende que todas as religiões estejam certas, ainda que os dogmas de uma sejam absolutamente conflitantes com os dogmas de outra. Dessa forma, não há incongruência no convívio pacífico entre as inúmeras religiões existentes, uma vez que todas são percepções (culturalmente) distintas do que é a divindade. E o que isso tem haver com a mensagem do Natal?

A história dos dois (ou três) homens cegos nos traz essencialmente a ideia de tolerância e diálogo. Assim, ainda que não se acredite no Natal, por motivos religiosos, ou que se esteja convicto de que a data é apenas um artifício de mercado, é preciso ter em mente que essas convicções não são “erros” ou “acertos”, mas apenas perspectivas diferentes sobre um mesmo fenômeno. Não foi o que quis Francisco I pregar, quando falou de tolerância e da aproximação da Igreja Católica com as outras igrejas?


Saiamos, contudo, do campo da religião, porque essa premissa vale para muitas outras coisas, e têm faltado tolerância e diálogo em tudo: no futebol, na política, no trânsito, na justiça. Os exemplos são muitos, mas o espaço é limitado. Que o Natal nos dê, então, além do feijão-com-arroz reflexivo de todos os anos, um pouco mais de tolerância e diálogo. Nós precisamos!



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 21 de dezembro de 2013.

Adeus, Madiba

Nelson Mandela morreu, mas suas lutas ainda continuam muito vivas. Falecido no último dia 5 de dezembro, Nelson “Madiba” Mandela foi um dos mais promissores políticos da história mundial recente, tendo presidido a África do Sul de 1994 a 1998, após mais de 25 anos em prisão política no seu próprio país, por haver se rebelado contra a injustiça, a desigualdade e a tirania. A descrição é breve, mas a verdade é que Nelson Mandela dispensa qualquer apresentação.

Uma das maiores batalhas de Madiba foi contra o Apartheid, um regime de segregação racial que durou quase 50 anos e que dividia a população sul-africana em grupos de “negros”, “brancos”, “de cor” e “indianos”, por exemplo. Em 1994, com a eleição de Mandela e o fim oficial do Apartheid (precedido, evidentemente, de alguns anos de negociações), houve o triunfo da igualdade e da democracia; e a queda da discriminação. Em tese.

A morte de Mandela deve servir para nos lembrar de que suas causas não foram vencidas e, por mais que ele tenha sido vitorioso em algumas de suas empreitadas políticas, ainda há por demais racismo e discriminação na África do Sul e no mundo – em especial no Brasil. Nelson Mandela se foi e, por isso, devemos reforçar que aquilo que ele combatia permanece e deve continuar sendo combatido. O Apartheid teve um fim “oficial”, mas todos os dias é possível ver segregação nas ruas, nas escolas e no trabalho – e a igualdade, garantida pela lei, serve para quê?

Segundo Nietzsche, a igualdade é um conceito artificial, falso e corruptivo, inventado pelos homens mais fracos para contrapor o poder dos homens mais fortes; na natureza, diz ele, não haveria igualdade. É possível concordar com o filósofo? Certamente a igualdade é um conceito desenvolvido pelo homem, a partir de sua racionalidade, mas isso não significa que seja um conceito “falso e corruptivo”. É, na realidade, um “trabalho” em constante progresso, que deve ser sempre incentivado; suas bases devem sempre ser fortalecidas.

Por essa razão não devemos rememorar a morte de Mandela apenas emocionadamente, como sugerem com ingenuidade jornais e televisão, e achar que a luta pela desigualdade social e racial fora vencida há anos. Ainda vivemos em uma sociedade desigual, e a morte de Nelson Mandela deve reforçar a luta (por vezes esquecida e morna) pela dignidade de mulheres, negros, homossexuais, deficientes físicos, presidiários etc., que têm de (con)viver constantemente com o preconceito, o despreparo da administração pública e as suas próprias dificuldades.

Nessa última semana, em meio às comoções pelo falecimento de Madiba, um dos mestres da Jaqueira, João Thomas Luchsinger, disse que Nelson Mandela não havia morrido, e que, enquanto existissem o ódio e a injustiça, existiria seu exemplo de vida. De fato, não há outra conclusão senão esta. Morre um ícone da luta pela democracia (aquela, em que idealmente há a igualdade), e subsistem os demônios da discriminação racial e do preconceito. Morre um ícone, mas continua a sua luta.



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 14 de dezembro de 2013.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Quem somos nós?

Certa vez, conversando com um amigo, ele me contou que resolvera visitar um psicólogo, porque queria apertar um pouco seus parafusos. Contou-me que havia relutado muito, mas que um belo dia tinha ligado para o consultório e marcado um horário. Lá chegando, acomodou-se no divã e, após as considerações iniciais de praxe, ouviu a seguinte pergunta vinda do terapeuta: “quem é você?”.

Disse que não soube responder e que, diante do fato de simplesmente não poder responder àquela pergunta, desabou em lágrimas. Chorava copiosamente enquanto se dava conta de que não sabia quem era ele próprio, até que enfim se acalmou a deu curso à consulta. E a partir daí eu já tinha deixado de prestar atenção no relato sobre a primeira sessão de terapia e me concentrava, incomodado, na pergunta que tinha deixado meu colega tão fora de si: “quem é você?”.

Albert Camus, escritor francês, possui uma célebre frase: “Se queres ser reconhecido, é só dizeres quem és. Creio que não sabemos quem somos. O que alguém faz, no fundo, é muito mais importante do que o que sabe sobre si mesmo”. José Saramago, noutro passo, dizia que viver sem saber onde estamos era algo na vida que não poderia suportar, e arrematava com ironia: “Sim, estamos na Terra, no sistema solar, na galáxia, mas realmente onde estamos?”. Pois não creio que saibamos.

A existência humana é marcada pela ignorância e pela dúvida; a curiosidade e a busca pelo conhecimento são consequências disso, e a Filosofia e a Ciência, que mais nos dão novas perguntas do que novas respostas, estão aí para nos provar isso. E nós, quem somos? A esse questionamento é quase impossível responder. Sabemos quem amamos, o que comemos, com o que trabalhamos e o que gostamos de fazer nas horas vagas, mas jamais poderemos afirmar com certeza que sabemos quem somos.

Por esse motivo, muito provavelmente, é o que homem vive em conflito com o mundo: porque não se conhece e não consegue resolver seus conflitos internos. Lembro-me de outra anedota. Visitei um “clube do livro” outro dia, apesar de não ter lido o livro que havia sido indicado para a reunião; justamente por não ter lido o livro, fiz questão de atentar para os debates. Já não me recordo o enredo, mas grande parte das discussões versou sobre “descoberta” e “consciência” do próprio caminho, e sobre como o indivíduo busca conhecer a si próprio, exatamente por ser insipiente.


Depois de ter ficado a reunião toda calado (afinal, não tinha lido o livro!), fui questionado sobre o tema em pauta. Confesso que pensei pouco e acabei falando qualquer besteira que, na hora, me tinha soado como puro artifício de retórica... Horas depois, pensando sobre o assunto, cheguei à conclusão de que não tinha ido tão mal, e que minhas palavras até que faziam algum sentido. E se fôssemos a eterna busca pelo autoconhecimento? Enxergamos a vida sob uma ótica embaçada, e todos os dias tentamos “limpar a janela” dos nossos olhos, desconstruir nossas impressões e expectativas, e nos conhecer melhor. É isso que somos?



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 7 de dezembro de 2013.

sábado, 30 de novembro de 2013

A nostalgia dos perfumes e dos sabores

A mente humana funciona de um jeito curioso: equações matemáticas, conclusões filosóficas, a saudade, o amor, entre outras coisas que o cérebro produz inexplicavelmente. Muito embora os cientistas estudem esses fenômenos todos os dias, ninguém sabe muito bem como a nossa mente é capaz de produzir todas essas sensações. Mais do que isso, é extremamente curioso o que o cérebro faz com todas essas informações, e como ele as distribui ironicamente em nosso dia-a-dia.

A propósito, lembro-me das palavras de Milan Kundera, em A Insustentável Leveza do Ser, quando divaga sobre isso. Diz o autor tcheco que a mente funciona com engrenagens, e que elas giram desencadeando sentimentos e emoções. Segundo ele, a engrenagem da ereção, em um homem, normalmente está atrelada à engrenagem da imagem de uma bela mulher, razão pela qual um homem talvez se excite quando vê uma bela mulher; por outro lado, curioso seria se, por um desígnio do destino, a engrenagem da ereção estivesse atrelada à engrenagem da imagem de uma andorinha, e então inexplicavelmente um homem poderia ficar excitado ao observar o voo de uma ave. Apesar da atecnia da explicação, não vejo problemas no raciocínio; acho-o, inclusive, muito pertinente.

Certa vez, enquanto tomava um copo d’água na cozinha, peguei-me fitando um saco de batatas timidamente posto no chão, e a partir daí tive inúmeras lembranças do intercâmbio que fiz em Portugal, já que a batata fazia parte inseparável das refeições portuguesas e dos pratos servidos na Faculdade em que lá estudei. Comentei o caso com alguns colegas e, para o meu espanto, todos narraram histórias parecidas: o cheiro de algum aromatizante de ar que lembrava uma ex-namorada, uma sobremesa específica que remontava a alguma data especial, ou mesmo uma colega que dizia que a água Perrier a fazia lembrar de que não gostara de beber água na França. Vai explicar! São as engrenagens do cérebro desencadeando, sabe-se lá por quais motivos, as mais diversas sensações e memórias.

Cheguei à conclusão, depois de um tempo, de que todos nós temos algumas coisas que, armazenadas pelo cérebro e irreverentemente dispostas por ele, nos causam nostalgia, saudade ou nos fazem esboçar um tímido sorriso de canto da boca. Pode ser, realmente, uma comida que nos remeta a nossa infância, ou uma música que nos faça lembrar um show marcante, um quadro, um filme. Qualquer coisa. Inevitável imaginar que, se todas as pessoas têm algo do tipo, até os gênios deviam ter, em momentos de lazer ou em arroubos de brilhantismo, coisas que neles desabrochavam lembranças curiosas...


A reflexão – por mais que pareça! – não é sem propósito. Digo tudo isso (sobre batatas, perfumes, engrenagens e lembranças) para pontuar o quão único e complexo é o gênero humano. É uma obviedade, evidentemente. Mas o óbvio se esconde atrás do véu do cotidiano (tão corrido!), e por vezes é necessário desvelá-lo, nem que seja por meio de uma anedota destas.



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 30 de novembro de 2013.

sábado, 23 de novembro de 2013

A fronteira da intimidade

Sempre que surge um momento de silêncio entre mim e a Ana, ela me diz: 25 centavos. Da primeira vez que ouvi a frase, não soube o que ela queria dizer com aquilo, e perguntei logo do que se tratava. “25 centavos pelo seu pensamento”, ela respondeu. Queria saber, portanto, o que passava pela minha cabeça enquanto transcorriam aqueles segundos que atravessavam a conversa entre uma palavra e outra.

Jamais soube o que dizer em todas as vezes que passávamos por esses momentos e ela me dizia, curiosa: 25 centavos. Sempre respondia que não estava pensando em nada, mas, sinceramente, não sei se era verdade. Incomoda-me profundamente a ideia de que, por alguns instantes, o cérebro possa entrar em inatividade, e alguém possa dizer que realmente não estivesse pensando em nada; por outro lado, toda vez que ela me oferecia 25 centavos pelo meu pensamento, eu não conseguia, apesar do esforço, formular qualquer resposta sobre o que eu estivesse eventualmente pensando. E agora?

Segundo um amigo a quem contei a história, provavelmente pensamos milhares de coisas ao mesmo tempo nesses breves minutos, e por isso não conseguimos concatenar em palavras o que passou pela mente. Parece uma boa resposta, mas não posso deixar de pensar que, igualmente, pode ser que, diante da inquisição (“25 centavos pelo seu pensamento!”), simplesmente não consigamos revelar para o outro as nossas ideias porque o pensamento é a última fronteira da intimidade.

Não é que necessariamente tenhamos vergonha de revelar os nossos pensamentos por serem eles escusos ou socialmente reprováveis; isso também, claro. No entanto, temos receio de dizer o que estamos pensando porque expor as ideias assim, diante da imposição de uma pergunta, é enfrentar a pior nudez que existe: não a de estar sem roupas, mas a de estar sem subterfúgios que protejam o que nós realmente pensamos de tudo e de todos.

Na era da informática, com o Twitter e o Facebook permeando todas as horas de nossas vidas, é cada vez mais difícil guardar para si um fragmento de verdadeira privacidade e intimidade. A privacidade, a propósito, diz respeito à nossa vida em um círculo social pequeno, com amigos e família, e isso, infelizmente, já está completamente publicado em aleatórias páginas da internet. A intimidade, por sua vez, possui um núcleo mais restrito, que se refere ao indivíduo consigo e suas relações interpessoais mais caras: esta dimensão já está ameaçada pelas suspeitas de fraudes de e-mails, espionagem, manipulação ilegal de dados etc.


O que nos resta, então, senão nosso pensamento? Ele é, realmente, a última fronteira que nos separa da absoluta exposição, não obstante isso soe exagerado. George Orwell anteviu, na obra “1984”, o terror que seria viver em um mundo no qual pensar certas coisas seria crime, e talvez o receio em desnudar o próprio pensamento seja natural àqueles que leram o livro... De todo modo, continuarei a responder que “não sei”, sempre que Ana me perguntar o que estou pensando: é a defesa dessa última fronteira.



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 23 de novembro de 2013.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

As aventuras do Legislativo

Deu nos jornais: “Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprova proposta de cotas raciais para deputados”. Mais uma vez, é o Legislativo “jogando para a torcida”, com o fim de legislar absurdos e fazer populismo próximo às eleições. Pergunta-se: para que instituir cotas raciais no parlamento? A cota é uma ação afirmativa, política pública que tem o objetivo de sanar, paliativamente, alguma disparidade social. Nas eleições, contudo, ela não faz sentido.

Façamos um paralelo com a educação. Nas universidades, é até interessante a existência de cotas (como medida temporária, evidentemente), já que todos têm direito à educação e, no entanto, as vagas são limitadas. Aliás, a educação é dever do Estado e, acima de tudo, um direito fundamental do cidadão, o qual, em tese, não pode ser negado em hipótese alguma. A atividade parlamentar, todavia é uma opção entre candidato e eleitores, durante o processo eleitoral, sem requisitos muito específicos ou coisa que o valha. Por que, então, instituir cotas em uma atividade que é opcional (e não obrigatória) e, sobretudo, já é, por essência, acessível?

É o jeitinho brasileiro de promover a igualdade: a democracia demagógica e “nas coxas”, com claro objetivo eleitoreiro. Mas essa história de “legislar para a torcida” motiva outras aventuras, mesmo em Manaus. Há um outdoor, espalhado pela cidade, que mostra algumas “propostas” de um deputado estadual: “menos tempo nas filas”, “mais médicos”, “melhor atendimento”... Ora, isso lá é proposta? No máximo, é um anseio geral; “proposta”, entretanto, é algo em que constam os meios e recursos para conseguir atingir determinada finalidade. Outdoors como este, muito aquém de propostas, querem apenas exibir a ideia de “estou trabalhando, votem em mim nas próximas eleições”.

Outro outdoor curioso, já não mais em circulação, mostrava o rosto de um deputado estadual (não o mesmo), e algo como “o serviço de telefonia tem que melhorar, e o preço tem que baixar!”. É verdade... Mas não é óbvio? Duas coisas assustam: a primeira, gastar dinheiro em uma propaganda com uma obviedade absurda dessas; a segunda, é que simplesmente não é competência de um deputado estadual legislar sobre os serviços de telefonia, matéria que é de competência exclusiva da União (art. 21, inciso XI, da Constituição da República). Em suma: o outdoor, além de óbvio, contém uma indignação vazia de conteúdo, mas cheia de autopromoção.


Estes são retalhos de um Poder Legislativo ineficiente e que busca “mostrar serviço” com atos e leis que, não raro, mais atrapalham do que ajudam. Em “Amor nos tempos do cólera”, de Gabriel Garcia Márquez, o personagem Lorenzo Daza dizia que a pior coisa que a má saúde era a má fama. No Brasil, a frase teria de ser adaptada. Aqui não há “pior” ou “melhor”, porque algumas coisas andam em pé de igualdade: a má saúde (da população), a má educação (das crianças), a má infraestrutura (das cidades) e, por fim, a má fama do Legislativo.



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 2 de novembro de 2013.

O receio e a necessidade de mudar

A maioria das pessoas tem receio de mudar. E não me refiro às grandes mudanças da vida, mas àquelas mudanças bobas, do cotidiano, que muitas vezes nós nem percebemos que rejeitamos o tempo inteiro. Dou o meu exemplo: todos os dias, quando acesso o site do meu banco, aparece uma janela com o seguinte aviso: “a visualização da página irá mudar, comece a utilizar o novo layout”; e todos os dias eu clico na opção “não, obrigado, continuar usando o layout tradicional”. Em suma, não quero mudar o layout do site do banco porque já estou muito acostumado com o layout tradicional, em que em viro bem. Do mesmo jeito, costumo comprar o mesmo tipo de celular, para não ter que aprender a mexer em todo um novo sistema operacional; e normalmente peço o mesmo prato ou petisco em restaurantes e bares que frequento.

Em um primeiro momento, pensei que eu fosse um tipo especial de ser humano chato que gosta sempre das mesmas coisas! Conversando com uns amigos, no entanto, cheguei à conclusão de que muita gente é assim, e é assim por medo de mudar e não se adaptar, de não se adaptar e depois ficar perdido, ou de perder a funcionalidade do cotidiano por não saber manusear determinadas tecnologias. Evidentemente que escolher sempre o mesmo prato ou evitar mudar de sistema operacional no telefone é uma superficialidade, mas essas atitudes mostram muito da postura de alguém diante da vida, e isso pode se tornar um inconveniente.

Lembro sempre da geração do meu pai e de outras pessoas que têm 50 e poucos anos. No meio da vida – lá pelos 30 e poucos – eles tiveram de reformular toda a dinâmica do dia-a-dia por causa do computador, da internet, do celular, do e-mail... Enfim, de tudo. De repente, tudo começou a ser feito no computador, e nos anos seguintes a revolução se manteve constante. Nestes últimos 20 anos, não só tivemos a revolução da utilização da tecnologia, como também dentro da nossa própria noção de tecnologia: quem era um grande “guru” da informática nos anos 90, hoje em dia, se não tiver acompanhado o ritmo das transformações, pode simplesmente não ser mais. Aliás, quem não se adaptou certamente virou um “dinossauro”.

E a nossa geração? Crescemos com a tecnologia e aprendemos a viver com ela, mas será que acompanharemos as evoluções ou viraremos dinossauros? É por isso que tenho pensado nesse assunto, e em como muitas pessoas têm receio de mudanças, mesmo mudanças sutis no cotidiano, como o novo layout do site do banco ou uma comida diferente no restaurante preferido. Agora, ao invés de “medo de mudar”, tenho começado a sentir “medo de não mudar” e ficar preso ao obsoleto.


A proposta, então, é fazer pequenas mudanças: ler um livro digital (algo que nunca fiz do começo ao fim, agarrando-me intensamente aos livros de papel), mudar o layout do site do banco, mudar de banco, tentar entender bem a bolsa de valores etc. e tal... Afinal, é preciso deixar o “velho” de lado, para que novo venha à tona!



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 26 de outubro de 2013.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Um caso, um problema

Durante a elaboração de uma peça jurídica, como um parecer, sentença ou petição, costuma-se colar” no corpo do texto algumas decisões judiciais que favoreçam o argumento que está sendo sustentado, a fim de “engrossar o caldo” da retórica utilizada. É o que chamamos de “colocar jurisprudência”, com o objetivo de demonstrar que a tese defendida está de acordo com o posicionamento atual dos tribunais do país.

Na hora de buscar estas decisões – no Google, por exemplo –, não raro encontramos casos judicias que não têm nada a ver com aquilo que estamos procurando, mas que são dignos de nota e lembrança. Numa destas pesquisas, quando procurava algo sobre dano moral, encontrei um curiosíssimo julgado do Superior Tribunal de Justiça, cujo resumo estava disponibilizado mais ou menos assim: “Pênalti não marcado. Compensação por danos morais decorrentes de erro de arbitragem. Incabível. Não se pode cogitar em danos morais ao torcedor pelo resultado indesejado da partida. O dano moral não se confunde o mero dissabor pelo resultado do jogo, situação inerente à paixão futebolística. Recurso não provido”. Trata-se do Recurso Especial n. 1296944/RJ.

O que isso significa, afinal? Em breves palavras: na Copa do Brasil de 2007, durante um jogo entre Atlético Mineiro e Botafogo, o árbitro da partida errou ao não marcar um pênalti a favor do Atlético-MG, e, após o apito final, o Botafogo (pasmem!) acabou se classificando para a fase subsequente. No dia seguinte, em entrevista, o próprio árbitro admitiu o erro, e disse que a situação era clara: a penalidade máxima deveria ter sido marcada.

Inconformado, um torcedor do Atlético ingressou na Justiça contra a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), em razão de supostamente ter sofrido danos morais com a desclassificação de seu time, o que teria acontecido por causa do erro de arbitragem. O pedido foi negado em todas as instâncias, por motivos de sobra no âmbito do Direito... E do futebol, em que estas “injustiças” são corriqueiras e fazem parte do mundo da bola.

A demanda nos revela várias coisas. Primeiro, é que estamos realmente no país do futebol, em que a mais importante Corte se dispõe a julgar, sobretudo com certo zelo, uma causa tão boba. Segundo, e mais importante, é que ainda subsiste entre muitas pessoas a cultura da “indústria” do dano moral, em que se pretende enriquecer alegando, em juízo, algum prejuízo moral exorbitante causado por empresas ou pelo Estado.

Felizmente, os juízes têm rechaçado estes pedidos inusitados ou exagerados, que geram injustiça (como enriquecimento sem causa, quando um sujeito recebe indenização muito além do razoável) e também atrapalham a Justiça, abarrotando os fóruns de processos e contribuindo para a lentidão de que tanto reclamamos. Aparentemente este problema não está com os dias contados, e deve persistir por mais alguns bons anos: pelo menos não é algo tão grave assim e, no final das contas, até que rende umas boas risadas e boas discussões. E então: pênalti gera prejuízo moral?


Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 19 de outubro de 2013.

Os 25 anos da "Cidadã"

Em outubro de 1988, há cerca de 25 anos, Ulysses Guimarães, então Presidente da Assembleia Constituinte, erguia perante o Congresso Nacional e o povo a nova Constituição da República Federativa do Brasil, carinhosamente apelidada de Constituição Cidadã. Hoje, apesar das inúmeras crises pelas quais o país passa – cite-se, por exemplo, uma severa crise política e de legitimidade –, ainda há motivos para comemorar este jubileu de prata.

A nossa Constituição sempre deixa os nervos à flor da pele, até mesmo quando se comemora seu aniversário: nesta última semana, a Câmara dos Deputados outorgou mais de mil medalhas comemorativas para aqueles que foram personagens decisivos do processo de redemocratização e constitucionalização do Brasil. Entre os agraciados, José Genoíno, deputado federal condenado pelo Supremo Tribunal Federal por corrupção ativa e formação de quadrilha. Não sei exatamente por qual motivo, mas me parece que o aniversário da Constituição não poderia passar sem que houvesse uma incongruência dessas.

Mesmo assim, devemos fazer desta data (que na verdade foi semana passada, em dia 5 de outubro) um momento de felicitação. De 1988 até aqui, a Constituição passou por várias mudanças e sofreu críticas; no entanto, é inegável que a Carta Cidadã foi um documento essencial para os avanços que o país vivenciou nos últimos anos.

Apenas por exercício argumentativo, dou um exemplo: o Brasil constitucionalizou um sistema de saúde totalmente gratuito, integral e acessível a todas as pessoas (art. 196), nacionais ou estrangeiros. É verdade que a saúde pública não funciona perfeitamente, mas apenas esta opção do legislador constituinte já significa uma grande vantagem para a população, que muitas vezes, mesmo através do Judiciário, obtém a cura de suas moléstias, graças à Constituição.

Certa vez, em tom de chiste, o Ministro Luís Roberto Barroso disse que a Constituição de 1988 tinha uma solução para tudo: só não trazia a pessoa amada em três dias. Uma verdade disfarçada de gracejo: nossa Lei Fundamental tratou de muitos assuntos que não precisariam ser tratados por ela, até mesmo constitucionalizando o Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro (art. 242, §2º). Seria este um defeito? Particularmente, reluto em apontar “defeitos” na Constituição: penso que ela possui muitas vicissitudes e peculiaridades, que fazem dela um documento único.


Dizem também que a Constituição é uma colcha de retalhos, emendada até seu último fio de cabelo. Não posso discordar do fato de que a nossa Carta Política fora “remendada” inúmeras vezes nestes últimos 25 anos; contudo, não é de se concluir que isto seja algo necessariamente ruim. Penso que faz parte do que é a essência da Constituição, dado ser uma Constituição à brasileira: retalhada, colorida, carioca; uma Constituição bossa-nova, uma Constituição feijão-com-arroz, e por aí vai. Que ela – que, afinal, tem a nossa cara – tenha um feliz aniversário, com mais respeito ao seu texto e mais efetividade às suas normas. Parabéns!


Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 12 de outubro de 2013.

O motorista-guerreiro

O site da revista Superinteressante possui inúmeras matérias sobre o trânsito, entre críticas, soluções e novas ideias para melhorar este problema que aflige grande parte dos brasileiros. Numa destas matérias, a revista atesta que o trânsito no Brasil parou, e aponta a solução:pôr a cabeça para funcionar. Não poderia deixar de concordar.

É verdade que a expressão, no contexto da matéria, possui o significado de repensar e reorganizar o trânsito das grandes cidades. Não pude deixar de concluir, contudo, que a maioria dos problemas do trânsito está mesmo no comportamento (acabeça, portanto) dos motoristas. Logo, seria o caso de inevitavelmentepôr a cabeça para funcionar.

O primeiro e grande passo talvez seja abandonar a cultura da guerra no trânsito e do motorista-guerreiro. Não, o trânsito não é uma guerra, ao contrário do que muitos pensam; e não, o automóvel não é um carro de batalha, destinado a vencer tudo e todos no trajeto de casa para o trabalho. Digo mais: abandonar a cultura da guerra no trânsito é essencial justamente porque se trata de uma simples questão de educação doméstica, valor que está em falta nas ruas do país.

Confesso que o que me motivou a escrever este artigo foi o acontecimento de alguns episódios (ou melhor, rotinas) por quais passo no trânsito de Manaus, e que explicam muito bem o que é a cultura e o comportamento do motorista-guerreiro. Relato. A primeira delas é quando, durante um engarrafamento, tenta-se mudar de faixa. O motorista liga educadamente o pisca-alerta, espera pacientemente a oportunidade de fazer a mudança, e esta oportunidade jamais aparece, porque os motoristas da outra faixa insistem em avançar e impedir a transição, sem qualquer motivo aparente.

Qual é o custo de ser educado? Aliás, qual é a dificuldade em ser educado? As ruas estão cheias de palavrões e buzinadas desaforadas, mas pouco se ouvedesculpe,por favoreobrigado. Trata-se de um ambiente insalubre em que, enquanto cada um se encerra em seu carro e em suas necessidades, pouco importa o outro ou a coletividade. Dentro de um carro, independente da pressa cotidiana de todos, é sempre o compromisso do próprio motorista o mais importante, jamais se cogitando que talvez o motorista ao lado também esteja aflito, com pressa, prestes a perder algo importante etc.

E os retornos em locais proibidos? E os carros nas calçadas? E aqueles que jamais param na faixa de pedestres? A propósito, e os pedestres que atravessam a rua debaixo da passarela? Estes comportamentos, que poderiam ser resolvidos com um mínimo de educação e consideração, fazem do trânsito uma verdadeira guerra; e de seus motoristas, verdadeiros guerreiros.


Que fique o apelo para que surja omotorista-amigo, em detrimento domotorista-guerreiro; que surja o motorista tolerante, ao invés do motorista impaciente; e, por fim, que o trânsito deixe de sersenão totalmente, pelo menos um pouco!este lamentável ambiente de guerra.


Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 5 de outubro de 2013.

Dignidade no fim da vida

O Direito sempre vai “à reboque da sociedade”. Significa dizer que, à medida que a sociedade vai evoluindo e trazendo à tona novas realidades, o Direito vai se modificando e se moldando para atender às demandas que surgem. É fácil exemplificar: só passou a existir o Código de Trânsito Brasileiro muitos anos depois da invenção do automóvel e de sua intensa utilização no Brasil. Ou seja, o Direito acompanhou posteriormente um avanço do cotidiano.

Com os avanços tecnológicos de hoje, é possível perceber essa tendência de modernização do Direito com muito mais facilidade. Para explicar de modo claro, pode-se mencionar a recente “Lei Carolina Dieckmann”, sobre crimes virtuais. Os crimes virtuais já existiam há muito tempo, mas só depois da exposição de fotos íntimas da atriz Carolina Dieckmann é que o legislador brasileiro produziu algo para punir esta conduta.

Não só a tecnologia é capaz de produzir mudanças que geram novos direitos, mas, principalmente, a Medicina. A propósito, justamente por lidar com a vida humana é que a Medicina e seus avanços exercem especial influência sobre o surgimento de novos direitos e de mudanças de paradigmas em relação ao indivíduo em sociedade. É seguro dizer que muitos anos atrás a maioria das mortes com causa natural acontecia em função de alguma cardiopatia. No entanto, pela descoberta de novos tratamentos e remédios, houve a diminuição das mortes naturais causadas por doenças de coração e os homens, ainda que tivessem uma vida mais longa, passaram a ter outras doenças, como o câncer, que causa mortes mais lentas e penosas.

Neste contexto de “prolongamento” do viver, em que várias pessoas ao longo dos anos viram-se definhando em camas de hospitais, sem expectativa de retomar a qualidade de vida, surge um tal “direito à morte”. Quando seria a hora certa de cessar a existência? Essa hora existe? O tema não é tão novo, mas não é muito debatido no Brasil, por se tratar de um tema muito polêmico e que envolve conceitos como a eutanásia, ortotanásia, distanásia e suicídio assistido.

A morte é um acontecimento intrínseco à vida, sobretudo quando a idade avança para além dos horizontes da independência física e mental. O homem, contudo, custa muito a aceitar a ideia de “morte” como algo normal. Cabe aqui fazer referência ao título deste artigo: “dignidade no fim da vida”. Não se trata simplesmente de morrer, porquanto a morte pode chegar, infelizmente, ainda na juventude. Trata-se de aceitar que a vida vai chegando ao fim, e que é melhor que este seja de modo digno.


Tema espinhoso, não? O assunto é tratado sob uma perspectiva bastante interessante no filme americano “You Don’t Know Jack”, sobre o médico Jack Kevorkian (interpretado por Al Pacino, por sinal), que defendeu o suicídio assistido nos EUA na década de 1990 e foi até mesmo apelidado de Dr. Morte. Evidentemente, não é uma temática “amena”, mas não faria mal que a sociedade debatesse: existe fim da vida com dignidade?



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 24 de agosto de 2013.

Pobre consumidor manauara

O mundo de vez em quando se organiza em dicotomias, importantes ou não: “homem x mulher”, “Flamengo x Vasco”, “direita x esquerda” e por aí vai. Há uma em particular, no entanto, que é muito importante e diz respeito a todas as pessoas da vida civilizada: a dicotomia “consumidor x produtor”. Esta se encaixa na categoria das dicotomias que não se justificam, porque consumidor e produtor não são partes que devam se opor, mas, antes, que devam se satisfazer mutuamente. Afinal, um só existe em função do outro.

No Brasil, assim como em muitos lugares do mundo, essa oposição entre consumidor e produtor é acentuada pelo modo como muitas empresas resolvem tratar o consumidor, desrespeitando direitos básicos com o intuito de ganhar mais dinheiro. Veja-se: existe uma seção do site do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que lista os 30 maiores litigantes em processos judiciais, e lá há mais de dez bancos, pelo menos seis empresas privadas de telefonia móvel, algumas grandes lojas de departamentos e também empresas de TV por assinatura.

Por que os números são assim? Porque é muito mais vantajoso desrespeitar o consumidor, ganhar dinheiro e depois pagar alguns advogados para mitigarem o dano do que evitar isso tudo, já que nem todo consumidor desrespeitado vai a juízo. Em suma, o “crime”, em relação ao consumidor, compensa. Em Manaus, a situação é um pouco diferente. Embora o consumidor manauara tenha problemas com as grandes empresas, tanto quanto qualquer consumidor brasileiro, o “carro-chefe” das nossas decepções consumeristas é o despreparo dos lojistas e o descaso dos vendedores (fala-se, é claro, da maioria, e é justo registrar aqui que há estabelecimentos em que o consumidor é incrivelmente bem atendido).

Não tratar bem o consumidor é puro amadorismo e falta de vontade de ganhar dinheiro, já que o consumidor satisfeito recomenda o lugar onde foi bem atendido, dá gorjeta e volta, para prestigiar o tratamento que recebe. À guisa de exemplo, certa vez, em uma viagem, entrei em uma loja e, depois de atendido por um vendedor, a loja me ofereceu uma cerveja. Por que não? É algo ligeiramente mais divertido que uma água ou um cafezinho, não custa muito dinheiro e cativa o cliente. Por que ninguém pensou nisso antes? Em Manaus, o consumidor entra em uma loja e inicia a “caça ao vendedor”, até que alguém finalmente se disponha a atendê-lo.

A culpa do despreparo é dos vendedores? Obviamente, sim, mas somente em análise prévia. Em último caso, a culpa da má qualidade do serviço é do empresário, que não fiscaliza o bom atendimento a seus clientes, não investe em treinamento para a sua equipe, não se preocupa em contratar funcionários motivados a trabalhar com qualidade etc. Aliás, a preocupação poderia ser resumida precisamente nisto: trabalho com qualidade.
Enquanto isso não acontece, o comércio manauara vai ganhando a fama de mal-educado, o consumidor perde em qualidade, o fornecedor perde em dinheiro e todos nós perdemos em bem-estar. Que tal mudar isso aí?



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 10 de agosto de 2013.

Gente chata

Há uma frase destas que circula pela internet, ilustrada por um personagem da Turma da Mônica, que diz assim: “O problema não é você ser ateu, cristão, budista, macumbeiro, espírita, gay ou seja lá o que for. O problema é você ser chato”. Após as devidas reflexões, cheguei à conclusão de que o mundo é habitado por uma imensidão de gente chata, simplesmente. Digo isto pelo tom que alguns “protestos” tomaram quando o Papa Francisco passeou por nossas terras, há pouco tempo.

Durante a Via Sacra, revoltosos de Copacabana entoaram gritos de guerra do tipo “eu beijo homem, eu beijo mulher / a minha boca pode beijar o que eu quiser!”. O perfeito exemplo de gente chata. Que tipo de pessoa sai do conforto do seu lar para ir se manifestar contra uma procissão de fé, que não faz mal a ninguém? É louvável quem vai às ruas entoar palavras de ordem contra a corrupção, contra a péssima gestão do governo e tudo mais, mas contra... O catolicismo? No que a crença religiosa particular de cada um pode motivar um protesto?

Dias depois destes episódios, o Papa Francisco deu a seguinte declaração: “se a pessoa é gay, procura a Deus e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?”. O Papa, evidentemente, não faz parte do grupo de “gente chata” e extremista que faz com que este tipo de discussão ganhe volume. De fato, o que há de contraditório entre o catolicismo e a orientação homossexual? Obviamente, nada. Cada qual que, católico ou gay, seja-o em seu canto, em paz, e sem incomodar os outros.

Se há debates sobre casamento, aborto e outras questões afins, e estes debates geram discussões em que se envolvem religiosos e homossexuais, isto é outra história. Em todo caso, deve haver respeito. A propósito, deve haver respeito em dois sentidos: primeiramente porque o episódio que relatei ocorreu durante a visita do Papa, que é o Chefe de Estado do Vaticano, o “menor país do mundo”. Ou seja, é uma conduta diplomática não desrespeitá-lo. Em um segundo momento, deve-se atentar para o fato de que a liberdade religiosa é garantida pela Constituição Federal, e a violação desta liberdade, em vários aspectos, constitui crime.

Protestar é ok. E manifestar-se contrariamente a uma determinada religião? Até aí, guardado o bom senso, também não há problema. O problema surge quando, como demonstrado por inúmeras reportagens, indivíduos começam a fazer insinuações obscenas com crucifixos e destruir, jogando ao chão, imagens religiosas. Qual é a necessidade disto? Entendo que o objetivo destes “protestantes” é combater a intolerância, mas não se pode lutar contra a intolerância sendo ainda mais intolerante.


Essa gente intolerante – ou, como eu disse, essa gente chata – é que amarga todos os bons debates polêmicos que são fundamentais para o saudável desenvolvimento de uma sociedade democrática. Eis o importante: ter a sua própria ideia e defendê-la, sem, no entanto, ofender ninguém que dela discorde. É preciso evitar, em verdade, a propagação desta gente chata.



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 3 de agosto de 2013.

sábado, 27 de julho de 2013

Devagar, quase parando

“Quando um corredor campeão começa a ficar aquém de suas melhores velocidades, leva um tempo para determinar se ele está apenas em uma fase ruim ou se perdeu definitivamente o fio da meada”. Com esta frase, a revista “The Economist” iniciou uma matéria em que comenta que as grandes economias emergentes do século XXI – Brasil, Rússia, Índia e China – estão perdendo força, e que este é só o começo. Para a revista, as economias emergentes são como os grandes corredores campeões, e vivemos num momento em que não se sabe, ao certo, se estes países irão se recuperar de uma péssima fase ou se definitivamente estão prestes a decair.

A matéria é ilustrada por uma charge bem simbólica. Numa pista de atletismo, quatro corredores estão atolados. O corredor chinês, bem adiante, ainda consegue se mover com certa lentidão; o corredor russo está com a lama até o joelho; o corredor indiano, com a lama até a cintura; e o corredor brasileiro, com semblante desolado, está com a lama batendo no peito, já fora do páreo. Mas a publicação da “The Economist” não foi a única nos comentários internacionais desta semana sobre o Brasil. O jornal americano “Chigaco Sun-Times”, da cidade de Chicago, que concorreu com o Rio de Janeiro para sediar as Olimpíadas de 2016, ironizou os protestos brasileiros e perguntou: “perdemos para isso?”

Tenho certeza, por exemplo, de que a Copa da Confederação foi ótima para os amantes de futebol, assim como a Jornada Mundial da Juventude, que agora sediamos com Papa e tudo, está sendo esplêndida para os que têm fé em Deus. E isso é o que importa. No entanto, devemos reconhecer que o Brasil tem “reprovado” quando passa por testes de segurança, organização e mobilidade em grandes eventos. Nesse sentido, dá até para entender a incredulidade dos jornalistas americanos. Perderam para isso?

As críticas internacionais são duras, mas devem servir de reflexão, ao invés de motivarem reações do tipo “só quem pode falar mal do Brasil são os brasileiros”. Não é possível dizer que as impressões da “The Economist” e do “Chicago Sun-Times” sejam a mais pura verdade, não.  Porém, é necessário reconhecer que o país anda um bocado desgovernado, com indefinição política, crise de legitimidade democrática, insegurança econômica e instabilidade social. Está na cara. Nesta mesma semana, durante a visita do Papa, o Presidente do STF, Joaquim Barbosa, cumprimentou Francisco I e passou direto por Dilma, sem lhe dirigir a palavra, deixando-a “no vácuo”. É normal que, em um país minimamente civilizado, o chefe do Judiciário seja tão deselegante com a chefa do Executivo? Não, não é.


Numa conversa sobre democracia, um grande amigo certa vez me disse o seguinte: o regime de democrático é como um relacionamento amoroso, e por vezes nos acomodamos com o passar dos anos, mesmo com situações desconfortáveis, até o ponto em que é preciso empreender mudanças. Já que, segundo a imprensa, estamos “atolados na lama”, será que não chegou a hora de enfim fazermos estas mudanças?



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 27 de julho de 2013.