domingo, 26 de janeiro de 2014

Garotos digitais do século 21

No distante ano de 1990 (lá se vão mais de 20 anos), a banda punk Bad Religion lançava a música “21st Century Digital Boy”, em que previa, no refrão, um fenômeno dos dias de hoje. Assim diziam: “I’m a 21st century digital boy, I don’t know how to read but I’ve got a lot of toys”. Ou seja: “sou um garoto digital do século XXI, eu não sei ler, mas tenho muitos brinquedos”. Alguma semelhança com a atualidade?

Lembrei-me da música – um clássico do punk californiano dos anos 90, por sinal – depois de ver um comercial de uma pizzaria local, em que a mãe perguntava à filha o que ela queria na sua festinha de aniversário. E a garotinha respondia: “muita pizza, brincadeira, internet e videogame!”. Então passei a imaginar como seria a curiosa festinha da menina, em que várias crianças se ignorariam mutuamente, enquanto comeriam pedaços de pizza e se distrairiam com o Facebook e vários videogames.

O refrão irônico da música do Bad Religion infelizmente estava certo, e hoje o mundo está cheio de “garotos digitais do século XXI”, que não sabem ler, mas têm muitos brinquedos. Pior: o mal se estendeu também aos adultos e seus “gadgets”, que proporcionam uma incrível cena comum de se ver, na qual várias pessoas estão em uma mesa sem conversar enquanto empunham seus smartphones e tablets. Nada contra a tecnologia, evidentemente – é até mesmo desnecessário mencionar todas as facilidades que a conectividade dos dias de hoje nos dá. No entanto, fico me perguntando se esses efeitos colaterais (ignorar quem está ao lado e se fixar no seu telefone) são naturais ou se o homem não está sabendo lidar direito com todos esses avanços, e acaba passando por pesadas consequências.

Milan Kundera, romancista tcheco radicado em Paris, tem um livro (“L‘art du roman”, 1986) em que diz que o papel primordial do romance é desvendar a existência humana em seus aspectos ainda inexplorados. Impossível não concordar com o autor, mas vou além. O grande desafio da cultura no século XXI (da Literatura, da Filosofia, da Ciência etc.) será também tentar redescobrir a essência da existência humana e, com isso, tentar combater o processo de “alheamento” pelo qual estamos passando.

Sim, o homem está passando por um processo de “alheamento”, de ficar indiferente aos outros e, portanto, passar a ser indiferente a si e à própria condição humana. Certa vez vi uma foto, na internet, em que um restaurante havia pendurado uma placa que dizia assim: “não, não temos wi-fi, conversem entre si!”. Ora, é óbvio que já se percebe, então, esse fenômeno. Mas como desvendá-lo e combatê-lo?


Muito aconteceu desde o lançamento de “21st Century Digital Boy”, e qualquer processo social que àquela época os cantores punks tenham notado, hoje em dia está bem pior. Culpa de quem? Não da tecnologia, mas de como lidamos com ela. Desaprendemos a ter contato com quem está do nosso lado na fila de espera do médico, e agora o caminho de volta certamente será mais difícil.



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 25 de janeiro de 2014.

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