sábado, 15 de fevereiro de 2014

Registrar, compartilhar... E viver?

No último filme de Ben Stiller, “A Vida Secreta de Walter Mitty”, Walter Mitty é um pacato funcionário da revista “Life”, que acaba tendo que viajar pelo mundo para encontrar Sean O’Connell, um fotógrafo-aventureiro que tem a foto que será a grande capa da história da revista. Lá pelas tantas, após subir algumas montanhas do Oriente Médio, Walter encontra Sean O’Connell, pacientemente aguardando, com sua câmera, a aparição do “leopardo da neve”.

Eles conversam um tanto, e Sean O’Connell lhe diz que o leopardo da neve é conhecido como “gato fantasma”, porque nunca se deixou ser fotografado. E então o gato aparece. O fotógrafo manuseia a câmera e, no entanto, não tira nenhuma foto. Walter pergunta: “Quando você vai tirar a foto?” E a resposta – onde eu quero chegar, afinal – é a seguinte: “Às vezes eu não tiro. Se eu gosto de um momento, particularmente, não gosto da distração da câmera. Eu prefiro apenas ficar no momento”.

Sean O’Connell é a alegoria de uma espécie de ser humano que, se ainda existe, está prestes a ficar em extinção: aquele que prefere viver os momentos a registrá-los e compartilhá-los. Se precisássemos escolher algumas palavras-chave para definir a primeira década do século XXI, certamente “compartilhamento” seria uma das primeiras a ser listada. É cada vez mais comum ver gente literalmente passando por momentos incríveis e enxergando-os através das frias telas de uma câmera ou de um celular. Eu, por exemplo, não lembro muito bem do momento de entrega da carteira da Ordem dos Advogados ao meu irmão, porque fui incumbido de registrar tudo durante a solenidade. Algum arquivo esquecido de um computador guarda essas (fotográficas) memórias, mas não eu. E o fenômeno se repete infinitamente.

Vivi o crepúsculo da era das câmeras analógicas, nas quais o filme só possuía 36 disparos e tínhamos que escolher muito cuidadosamente quais fotos tirar; e me lembro do meu pai trocando o filme da câmera em um quarto escuro, para evitar que ele queimasse e que perdêssemos as (poucas) fotos que tínhamos tirado. Sem querer soar saudosista, mas... Bons tempos. Naquela época, o tempo era mais bem dividido entre viver momentos e registrá-los, ainda sem a agonia do compartilhamento instantâneo.

Hoje em dia as coisas parecem ser regidas por uma nova dinâmica. Não a de viver momentos e eventualmente guardá-los em fotos, para a “posteridade”; mas a dinâmica do jugo da exposição social antes mesmo de se poder considerar “vivido” um momento: a sua lembrança só vale se ela for registrada e compartilhada na internet.


Os americanos têm uma expressão interessante. Quando começam a namorar, o relacionamento só vale depois de virar “Facebook official”, ou seja, depois da divulgação do relacionamento nos perfis da rede social. É como se a exposição “validasse” algo que, a princípio, só diz respeito a duas pessoas. Nosso espírito de “Sean O’Connell” está morrendo, e daqui a pouco nossas vidas só vão valer assim, se forem “Facebook official”.



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 15 de fevereiro de 2014.

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