sábado, 22 de dezembro de 2012

Mais do que roupa, um pouco de poesia


Talvez seja seguro dizer que, quando as pessoas doam roupas em caridade, grande parte das doações seja motivada mais pela falta de espaço no armário do que pela caridade em si. E isso de modo algum é errado: é pura e simplesmente unir o útil ao agradável, é querer livrar-se de um excesso de roupas e repassá-las a pessoas que estejam em necessidade. Aliás, mesmo que a solidariedade não seja o principal propulsor destas doações, é bom que as pessoas se desprendam de bens materiais e que isso ajude outrem no fim das contas.

Podemos supor que seja fácil, em geral, abrir mão daquelas roupas que já não vestem tão bem e que estão largadas no fundo de uma gaveta. Outras doações seguem o mesmo “estilo” de fácil desprendimento: artigos de higiene e limpeza, lençóis, um microondas velho que perdeu lugar para um novo, um quilinho ou dois de alimentos não perecíveis e outras coisas aqui e acolá.

O desafio acontece quando as doações passam a ser de objetos a que nos apegamos. A propósito, não é somente difícil doar coisas que nos são queridas, mas, sobretudo, jogar fora coisas inúteis e que nos trazem lembranças agradáveis: tampinhas de cerveja de uma viagem saudosa, uma prova com nota dez da época de escola, uma caneta preferida cuja tinta se esgotou, enfim.

Há pessoas, como eu, que têm ciúmes imensos de seus livros. Adoro indicar leituras e até empresto livros às vezes, mas sob a condição de tê-los de volta tão logo o cessionário termine de ler. Certa vez até briguei com minha namorada por isso: emprestei-lhe um livro que, depois de oito meses, ela não lera; por isso, tomei-o de volta e causei uma celeuma gravíssima no relacionamento. Até hoje não podemos falar sobre Umberto Eco sem que haja constrangimento.

Outro caso de forte apego é o de meu pai: ele possui um piano, herança de meu avô, que passa longos dias sem que dele se tire uma única nota. Já se cogitou doar o piano a algum jovem estudante sem condições de arcar com a compra de instrumento tão caro, ou de cedê-lo a algum conservatório local. Deve ser dificílimo, para meu pai, pensar em se desfazer de um piano que carrega tantas histórias e lembranças.

Por ocasião do incêndio no bairro São Jorge, resolvi fazer uma doação e me deparei com um impasse diante do armário: doaria duas camisetas com frases de Fernando Pessoa e Machado de Assis? Resolvi colocá-las logo na sacola e me livrar da dúvida antes que eu desistisse de passar adiante aquelas roupas de que gostava tanto, mesmo quase não as usando mais. Depois, pensei que aquelas duas simples camisetas fossem as melhores peças de todas as doações da cidade, porque não só aqueceriam o corpo como também a mente, com cultura e poesia. Fiquei feliz.

Doar um piano, um bom livro ou uma roupa com belas frases pode não salvar definitivamente a vida de quem está em crise, recebendo doações. Contudo, é certamente um bálsamo para a alma de quem doa: saber que aquele objeto, que não nos realiza mais plenamente, dará um pouco mais de brilho à vida de quem o receber.



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 22 de dezembro de 2012.

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