Talvez seja seguro dizer que, quando
as pessoas doam roupas em caridade, grande parte das doações seja motivada mais
pela falta de espaço no armário do que pela caridade em si. E isso de modo
algum é errado: é pura e simplesmente unir o útil ao agradável, é querer
livrar-se de um excesso de roupas e repassá-las a pessoas que estejam em
necessidade. Aliás, mesmo que a solidariedade não seja o principal propulsor
destas doações, é bom que as pessoas se desprendam de bens materiais e que isso
ajude outrem no fim das contas.
Podemos supor que seja fácil, em
geral, abrir mão daquelas roupas que já não vestem tão bem e que estão largadas
no fundo de uma gaveta. Outras doações seguem o mesmo “estilo” de fácil
desprendimento: artigos de higiene e limpeza, lençóis, um microondas velho que
perdeu lugar para um novo, um quilinho ou dois de alimentos não perecíveis e outras
coisas aqui e acolá.
O desafio acontece quando as doações
passam a ser de objetos a que nos apegamos. A propósito, não é somente difícil doar
coisas que nos são queridas, mas, sobretudo, jogar fora coisas inúteis e que
nos trazem lembranças agradáveis: tampinhas de cerveja de uma viagem saudosa,
uma prova com nota dez da época de escola, uma caneta preferida cuja tinta se
esgotou, enfim.
Há pessoas, como eu, que têm ciúmes
imensos de seus livros. Adoro indicar leituras e até empresto livros às vezes,
mas sob a condição de tê-los de volta tão logo o cessionário termine de ler.
Certa vez até briguei com minha namorada por isso: emprestei-lhe um livro que,
depois de oito meses, ela não lera; por isso, tomei-o de volta e causei uma
celeuma gravíssima no relacionamento. Até hoje não podemos falar sobre Umberto
Eco sem que haja constrangimento.
Outro caso de forte apego é o de meu
pai: ele possui um piano, herança de meu avô, que passa longos dias sem que
dele se tire uma única nota. Já se cogitou doar o piano a algum jovem estudante
sem condições de arcar com a compra de instrumento tão caro, ou de cedê-lo a
algum conservatório local. Deve ser dificílimo, para meu pai, pensar em se
desfazer de um piano que carrega tantas histórias e lembranças.
Por ocasião do incêndio no bairro
São Jorge, resolvi fazer uma doação e me deparei com um impasse diante do
armário: doaria duas camisetas com frases de Fernando Pessoa e Machado de
Assis? Resolvi colocá-las logo na sacola e me livrar da dúvida antes que eu
desistisse de passar adiante aquelas roupas de que gostava tanto, mesmo quase
não as usando mais. Depois, pensei que aquelas duas simples camisetas fossem as
melhores peças de todas as doações da cidade, porque não só aqueceriam o corpo
como também a mente, com cultura e poesia. Fiquei feliz.
Doar um piano, um bom livro ou uma
roupa com belas frases pode não salvar definitivamente a vida de quem está em
crise, recebendo doações. Contudo, é certamente um bálsamo para a alma de quem
doa: saber que aquele objeto, que não nos realiza mais plenamente, dará um
pouco mais de brilho à vida de quem o receber.
Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 22 de dezembro de 2012.
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