sábado, 21 de dezembro de 2013

O Natal e os três homens cegos

O Natal é, ao mesmo tempo, uma data religiosa e um fato social. É uma data religiosa porque simboliza o nascimento de Cristo para as religiões cristãs; e é um fato social porque o Natal se impõe a todos independentemente da crença religiosa de cada um. É verdadeiramente impossível, pelo menos no Brasil, não “passar pelo Natal”, mesmo não sendo cristão.

Se ele tem significado bem definido para a cristandade, então o que resta àqueles que só o percebem como um “fato”, e não como uma data religiosa? Em outras palavras: qual o significado do Natal para ateus e pessoas de outras religiões? Fatalmente será um significado ligeiramente diverso do que é dado pelo cristianismo, mas não menos nobre.

 John Hicks, filósofo contemporâneo, trata da diversidade de religiões através da narrativa sobre a percepção sensorial de três homens cegos ao descreverem um elefante. A literatura filosófica, ao longo dos anos, desenvolveu outras histórias baseadas na mesma premissa, e eu peço licença para humildemente utilizar a minha, e não a original, que está disponível na internet. Imaginemos, pois, dois homens cegos, e não três.

Dois homens cegos são levados para o Encontro das Águas, tendo lhes sido dito somente que iriam para um rio, sem que soubessem qual. Lá chegando, cada um pulou de um lado do barco, nadou um pouco e depois voltou à embarcação. O cego que havia pulado no rio Negro descreveu a experiência de nadar em um rio com águas leves, de temperatura um pouco mais elevada; o cego que pulara no rio Solimões discordou, e narrou que tinha pulado em um rio um pouco mais frio, com águas pesadas e provavelmente barrentas. Cada um dos dois atestou, irredutivelmente, o acerto próprio e o erro do outro.

Algum deles está incorreto? Evidentemente, não. Assim é que John Hicks defende que todas as religiões estejam certas, ainda que os dogmas de uma sejam absolutamente conflitantes com os dogmas de outra. Dessa forma, não há incongruência no convívio pacífico entre as inúmeras religiões existentes, uma vez que todas são percepções (culturalmente) distintas do que é a divindade. E o que isso tem haver com a mensagem do Natal?

A história dos dois (ou três) homens cegos nos traz essencialmente a ideia de tolerância e diálogo. Assim, ainda que não se acredite no Natal, por motivos religiosos, ou que se esteja convicto de que a data é apenas um artifício de mercado, é preciso ter em mente que essas convicções não são “erros” ou “acertos”, mas apenas perspectivas diferentes sobre um mesmo fenômeno. Não foi o que quis Francisco I pregar, quando falou de tolerância e da aproximação da Igreja Católica com as outras igrejas?


Saiamos, contudo, do campo da religião, porque essa premissa vale para muitas outras coisas, e têm faltado tolerância e diálogo em tudo: no futebol, na política, no trânsito, na justiça. Os exemplos são muitos, mas o espaço é limitado. Que o Natal nos dê, então, além do feijão-com-arroz reflexivo de todos os anos, um pouco mais de tolerância e diálogo. Nós precisamos!



Publicado no jornal AMAZONAS EM TEMPO em 21 de dezembro de 2013.

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